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Gonçalo Amarante Guimarães Pereira

Professor do Instituto de Biologia da Unicamp e Coordenador do Laboratório de Genômica e bioEnergia

OpAA66

O carro bioelétrico

Ainda no século XVIII, antes do conhecimento do átomo, a ideia da eletricidade ficou clara, mas atribuiu-se o fluxo de energia ao movimento de cargas positivas. Já no final do século XIX, percebeu-se que, na realidade, as cargas que se moviam eram as negativas: os elétrons. Apesar disso, uma vez que todos tinham se acostumado com o erro, o engano foi mantido.

Hoje, temos que falar que a corrente tem um sentido real e um sentido convencional, o que gera um verdadeiro nó na cabeça de quem começa a estudar a eletricidade.  Temos muito a aprender com essa breve história. Primeiro, que erros podem se perpetuar, mesmo depois que percebemos serem erros. 

Por exemplo, carros elétricos a bateria se tornaram uma febre a partir da ideia de que eles não emitiriam gases de efeito estufa. Entretanto, a maior parte da eletricidade do mundo é gerada a partir das fontes fósseis, e a fabricação de baterias, assim como sua operação ao longo da vida de um veículo, demanda enorme quantidade de energia.

Além disso, os metais necessários para as baterias, como cobalto e lítio, têm uma ocorrência restrita a poucos países, e  isso, seguramente, vai gerar uma tensão geopolítica similar à do petróleo. Portanto, se substituímos carros a combustão pelos elétricos a bateria, estaremos apenas maquiando um problema. 
 
O público estará sendo confundido, achando estar eliminando as emissões quando estará apenas movendo-as de lugar. Os beneficiários dessa tecnologia, que serão aqueles envolvidos na fabricação e na negociação de tais veículos, ficarão torcendo para que todos se acostumem com o erro e possamos, assim, estabelecer uma “eletrificação convencional”. 

Voltando às cargas, talvez os pioneiros da eletricidade não estivessem tão errados assim. Sabemos, hoje, que prótons, como o do hidrogênio e os contidos no ânion oxigênio, podem fluir através de condutores especiais. Esse fenômeno forma a base das Células Combustíveis, que podem dar origem à “eletrificação real”, que cumpra os objetivos desejados para evitar as mudanças climáticas.

Tudo começana fotossíntese, um processo que arranca os hidrogênios da água, com elétron e tudo, e os transfere para um CO2. Isso feito por 6 vezes, gera uma glicose, que é uma espécie de peça de lego fundamental, cada uma delas carregada com 12 hidrogênios. Por sua vez, essa glicose pode ser convertida em 2 moléculas de etanol, que, juntas, carregam dois oxigênios e todos os 12 hidrogênios da glicose. 



Esses “cachos de hidrogênio” se apresentam na forma líquida, não tóxica, e com grande densidade energética, muitas vezes maior do que a da bateria de lítio mais eficiente. Além disso, os hidrogênios desse cacho podem ser separados, em um processo denominado reforma, ficando disponível para as células combustíveis. 

Existem dois tipos principais de células combustíveis: a PEM e a SOFC (acompanhe na figura em destaque). As células PEM demandam um hidrogênio superpuro, utilizam metais nobres no catalisador (normalmente platina) e operam a baixas temperaturas. O ânodo é separado do cátodo por uma membrana especial, que impede a passagem dos elétrons, enquanto permite a migração do próton.

Daí o nome PEM: Proton Exchange Membrane. Como consequência, os elétrons escapam por um fio condutor, gerando uma corrente elétrica, que é utilizada para o carregamento de uma bateria ou mesmo a alimentação do motor elétrico. Uma coisa importante dessa tecnologia é que ela é dinâmica: quanto mais hidrogênio colocar, maior será a produção de eletricidade.

Para um veículo, que tem que acelerar com rapidez, essa é uma característica altamente desejada. Por outro lado, a necessidade do hidrogênio puro faz com que essas células sejam normalmente alimentadas com gases armazenados, o que exige reservatórios sofisticados para resistir a altas pressões. 

Além disso, o abastecimento com hidrogênio é extremamente complicado e perigoso, havendo, no mundo, poucos postos com essa capacidade. Exemplo do uso dessa tecnologia é o modelo Mirai, da Toyota. A segunda opção são as células SOFC. Nesse caso, ao invés de uma membrana, o material que separa cátodo e ânodo é uma cerâmica feita a base de óxido sólido (daí o nome SOFC: Solid Oxide Fuel Cell.

Diferentemente das células PEM, as células SOFC operam a altas temperaturas, são resistentes a impurezas vindas com o hidrogênio e utilizam materiais simples e baratos na sua confecção. O princípio é também a impermeabilidade da célula aos elétrons, que têm que escapar gerando uma corrente. Entretanto, aqui, é o ânion oxigênio que viaja.

No cátodo, o O2 recebe os elétrons que fugiram pela corrente e se dissocia, gerando um átomo de oxigênio com dois elétrons (O-2). Esse ânion passa pela cerâmica como se estivesse pulando por entre buracos de um queijo suíço. Ao chegarem do outro lado, encontram os prótons hidrogênio e formam a água.
 
Assim, no conjunto, podemos alimentar etanol na entrada de um “Reformador Embarcado” e teremos, como produto, uma corrente elétrica, água e o CO2 verde, vindo da fotossíntese. Exemplo dessa tecnologia está em um protótipo da Nissan, que rodou de forma experimental no Brasil por cerca de 2 anos, com performance aproximada de 22 km por litro de etanol.   
 
Criamos o Proálcool em resposta à crise do petróleo nos anos 1970. Ao analisá-lo com calma, a locomotiva do programa foi o carro a etanol. Foi ele que gerou a demanda que puxou todos os demais vagões – agrícola, energético e industrial –, que correram no trilho de uma política pública bem elaborada. 
 
Precisamos repetir isso imediatamente. Estamos vendo uma importação, cada vez maior, de peças automotivas para o Brasil, o que já se eleva em torno de U$ 50 bilhões, acarretando o desmonte dos nossos centros de tecnologia. Para fazer frente a isso, precisamos urgentementede uma política que induza e incentive o desenvolvimento tecnológico na área das células combustíveis.

Há muito a ser feito, e o programa Rota 2030 é tímido demais para isso. Precisamos de pesquisa nos catalisadores, nos materiais das membranas e cerâmicas, na eletrônica do processo, na miniaturização de reformadores, no desenvolvimento de novos processos de reforma direta, entre muitos outros temas.

Com o conhecimento que temos, que nos coloca entre os principais produtores de ciência do mundo, podemos nos tornar um polo mundial em células combustíveis. Creio que chegou o momento de criarmos uma indústria automobilística nacional capaz de desenvolver o carro bioelétrico, um produto que faz 25 km por litro de etanol e entra em um mercado que tem o preço desse combustível limitado a 70% do preço da gasolina. Será o sonho de consumo de todos os brasileiros.   

Entretanto, para realizar isso, precisaremos, antes de tudo, de ter vontade de liderar. Se tivermos sucesso, poderemos ampliar essa tecnologia para todo o planeta. Isso aumentaria grandemente a demanda por biocombustíveis, que seriam produzidos principalmente em países tropicais, gerando emprego, renda e sustentabilidade. Trata-se de um processo tão extraordinário, que chegamos até mesmo a esquecer o efeito estufa, que poderá ser naturalmente corrigido como efeito dessa revolução.