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Sizuo Matsuoka

Diretor da Vignis

Op-AA-40

Baixa produtividade: só a quebra de paradigma pode resolver

Na atual crise do setor sucroalcooleiro, há diversos fatores envolvidos, e, neste número da Revista Opiniões, eminentes analistas estão opinando sobre cada um deles, independente de suas grandezas relativas. Uma questão que veio à tona foi a queda de produtividade dos canaviais, algo que potencializou a crise.

Uma crise é sempre indutor de reflexões e, geralmente, vetor de mudanças. O setor sucroalcooleiro, secularmente, vem passando por mudanças socioeconômicas e tecnológicas, mas a planta de cana-de-açúcar, intrinsicamente, não mudou: sempre foi explorada como planta produtora de sacarose. E o melhoramento genético trabalhou nos últimos 100 anos com este objetivo: criar variedades com bom teor de sacarose e, contrariamente, com baixo teor de fibra, uma exigência da indústria para facilitar a extração do caldo. Aí é que reside o problema, como se explicará a seguir.

O melhoramento genético da cana-de-açúcar através da hibridação iniciou-se há mais de 100 anos, em Java (hoje Indonésia). Naquela época, na maioria dos canaviais do mundo, eram cultivados tipos de Saccharum officinarum L., as canas “nobres”, como foram chamadas, de colmo bastante grosso (3-4 cm de diâmetro), vistoso, macio e bastante açucarado. Mas,depois de mais de 100 anos de cultivo, passaram a apresentar muita queda de produtividade em razão do acúmulo de doenças.

Então, os cientistas da antiga colônia holandesa de Java visualizaram a hibridação com espécies selvagens como meio de incorporar genes não só de resistência como também de rusticidade. Porém os clones em F1 (primeira geração) tinham excessivo teor de fibra e baixo teor de sacarose, uma combinação inadequada para o padrão industrial.

Houve, então, necessidade de retrocruzamentos – cruzar os filhos com a mãe, depois os netos, e, assim, sucessivamente alguns ciclos, para aumentar a participação do genoma de S. officinarum – e chegar a materiais que tivessem um equilíbrio adequado entre teor de sacarose e teor de fibra, ao mesmo tempo atendendo a todas as demais características agronômicas.

A grande dificuldade sempre foi chegar a esse equilíbrio, pois a necessidade de se ter alto teor de sacarose significa ter menor participação do genoma selvagem (S. spontaneum) e, consequentemente, o híbrido, perdendo as características que foram a razão da hibridação – a resistência a doenças e a rusticidade conferida por esse ancestral selvagem.

Esse processo foi basicamente replicado em todos os programas de melhoramento de cana-de-açúcar, que foram, posteriormente, estabelecidos no mundo, e, assim, os híbridos modernos apresentam um equilíbrio tênue entre teor de sacarose e teor de fibra. Isso se constitui grande obstáculo ao avanço: chegou-se a um patamar de produtividade em que ganhos futuros serão limitados, isto é, as novas variedades darão pouca contribuição para o aumento de produtividade.

Essa afirmativa pode chocar num primeiro instante, mas uma análise histórica das produtividades de todas as regiões canavieiras do mundo mostra exatamente isto: não tem havido mais ganhos significativos de produtividade nas últimas décadas. A constatação clara é que se chegou a um patamar de produtividade difícil de ser suplantado pelo tradicional “modelo” de variedades.

Mas logo viria a pergunta: as variedades tiveram culpa no cartório na atual crise? Afinal, vários fatores são apontados como responsáveis pela crise, e, à primeira vista, parece que as variedades nada tiveram a ver com o fato, que merece uma análise mais criteriosa. As principais causas agronômicas apontadas para a baixa produtividade que vem acontecendo no setor nos últimos três anos, pelo menos, são:
a. mudança tecnológica, induzida pela eliminação da colheita de cana queimada;
b. falta de renovação de canaviais;
c. incidência de doenças e pragas;
d. fatores climáticos desfavoráveis.

Vejamos, então, resumidamente, a relação de causa e efeito. A necessidade da eliminação da queima prévia à colheita por motivos sociais e ambientais induziu a necessidade da colheita mecanizada, o que, em última instância, resultou numa mudança drástica do ambiente para a planta. E toda mudança requer adaptação.

E muitas das variedades se mostraram frágeis nessa adaptação porque não tinham suficiente adaptabilidade e estabilidade, características importantes e necessárias em plantas, especialmente nas cultivadas. Portanto, ainda que indiretamente, elas tiveram relação com o fato: estivessem mais próximas do ancestral selvagem e teriam tolerado mais essa mudança de ambiente. Já a falta de renovação dos canaviais é imputada às dificuldades financeiras dos produtores.

Não há dúvida quanto a isso. Mas se há de convir que essa dificuldade vem, em parte, da baixa produtividade das lavouras e consequente prejuízo financeiro, agravado pela baixa taxa de multiplicação da cana, ainda mais baixa pelo plantio mecânico.

A incidência de doenças e pragas é primariamente controlada por variedades resistentes, que foi um dos maiores objetivos dos programas de melhoramento desde o início, e são inúmeros os exemplos de substituição de variedades devido à incidência de doenças por todo o século XX, em praticamente todos os países. Na atual crise, a ferrugem alaranjada foi claramente uma das causas de prejuízo.

Passemos, então, ao último fator. Dentre os fatores climáticos desfavoráveis, a seca e também a geada e o excessivo florescimento foram bastante citados como vilões e, sem dúvida o foram, e também as variedades tiveram participação. Elas têm distinta reação à falta d’água e, a partir de certo nível de seca, os prejuízos podem ser substanciais.

Isso porque a participação do genoma do ancestral selvagem é pequena pela necessidade de aumentar o genoma da cana nobre para se ter mais açúcar, como foi explicado; se fosse o contrário, a tolerância à seca seria bem maior e, consequentemente, a estabilidade de produção seria maior. A tolerância à geada segue a mesma justificativa porque a cana nobre, sendo tropical, tem baixa tolerância ao frio e, ainda, a deterioração pós-geada é rápida porque o substrato açucarado é um meio de cultura muito favorável aos microrganismos.

Essa análise coloca, portanto, as variedades atuais em sua real perspectiva, que não lhes é favorável. Depois de mais de 100 anos de melhoramento genético, o que se constata é que será muito difícil suplantar significativamente o patamar atual, a continuar esse paradigma de alto teor de sacarose e baixo de fibra. É ilusório pensar que se terá ganhos significativos daqui por diante, seja com as variedades obtidas pelo método convencional ou pela glamourosa transgenia.

“Caindo na vida”, ou seja, em cultivo continuado na grande lavoura, elas sempre sofrerão o efeito do ambiente, isto é, apresentarão alguma deficiência de desempenho. Elas serão importantes para a manutenção da produtividade, mas não para atingir patamares mais altos. A única forma de se romper o teto e atingir um novo patamar é quebrando o secular paradigma: priorizar o teor de fibra ao invés de sacarose.

Certamente, essa é uma ideia controversa, uma grande ruptura em relação ao que se praticou secularmente, e, como tal, pode-se antecipar que terá a repulsa da maioria, pelo menos num primeiro momento, e isso há que ser encarado como natural.

Notícia bastante recente revela que o setor sucroalcooleiro não está conseguindo entregar a eletricidade contratada pela Aneel por falta de bagaço para a cogeração. Isso é grave, porque se trata de uma energia “limpa”, que não só contribuiria para contrabalançar a energia “suja” gerada pelas termelétricas como também evitaria o grande dispêndio monetário que o governo está tendo pelo alto custo dessa energia suja.

 E a falta de bagaço decorre do baixo teor de fibra das variedades convencionais. Se as variedades tivessem teor de fibra mais alto ou produtividade mais alta, não haveria essa falta de bagaço, e o setor sucroalcooleiro poderia contribuir muito para evitar a carência de eletricidade que se prenuncia no País nos anos vindouros.

Se a geração de eletricidade com a queima do bagaço é uma das formas de se agregar valor à fibra, muito mais valor pode ser agregado com novas tecnologias, como o etanol de segunda geração (2G), a produção de bio-óleo, de gás, de outros produtos químicos, etc., sem falar em agregados para construção civil, pellets, pasta de celulose, papéis, etc.

Enfim, com mais fibra, as usinas se transformariam em biorrefinarias, e, para tanto, a fibra seria um produto de muito maior valor do que o açúcar. É um sério olhar para o futuro. Nesse novo olhar, é que se divisa a “cana energia”.  E o que vem a ser cana energia? Ela é uma variação da cana convencional em que, contrariamente a esta, tem baixo teor de sacarose e alto teor de fibra. Para se obtê-la, usa-se o mesmo princípio básico da cana (convencional): hibridação entre espécies e gêneros ancestrais.

Contudo a grande diferença é o objetivo:  sendo a biomassa o fim e não a sacarose, se pratica uma seleção divergente, em sentido contrário, para alto teor de fibra, ou seja, alta produção de biomassa. É, portanto, uma seleção contrária ao que se fez durante mais de 100 anos na cana-de-açúcar convencional, com a vantagem de que, com isso, se mantém uma alta proporção de genes do ancestral selvagem, que, justamente, confere à planta alta resistência a estresses ambientais (solo, clima e manejo) e, adicionalmente, alta capacidade produtiva: em termos de biomassa total, produz de duas a três vezes mais, e, consequentemente, a produção de açúcar por área pode ser até superior à da cana convencional, com a vantagem adicional de três a quatro vezes mais de bagaço.

Em outras palavras, plantas mais resistentes à seca, a variações de temperatura, ao manejo agrícola, mais adaptadas a solos pobres, etc. Possui ainda inúmeras outras vantagens, mas aqui serão citadas mais duas: ela tem o dobro de longevidade de socas e, por ter grande número de colmos por metro linear, possibilita uma razão de multiplicação 3 a 5 vezes maior. Com essa rápida caracterização da cana energia, já é possível perceber quantas vantagens ela traz em relação à cana convencional. E, aqui, não se estão discutindo as vantagens ambientais, que são muitas.

Mesmo na atual conformação das usinas/destilarias, a cana energia pode dar significativa contribuição. A ampliação do período de safra sempre foi objetivo, e uma safra que, até meados da década de 1970, se iniciava na segunda metade de junho foi ampliada para iniciar primeiro em meados de maio, depois início desse mês, para chegar a abril nos dias de hoje. Variedades de maturação precoce contribuíram muito para isso, mas também a tecnologia de maturadores artificiais e, naturalmente, a fabricação de etanol.

Porém aí persistem dois problemas: sacrifica-se muito a produtividade, tanto agrícola como industrial, e o bagaço é insuficiente. Operando-se um a dois meses iniciais da safra com cana energia, haveria grande quantidade de bagaço para uso próprio e para a cogeração, sem sacrificar a produção nominal de etanol, e se otimizaria bastante a produtividade das variedades convencionais.

Também se poderia moer a cana energia pelo menos durante um mês no final de safra, o qual seria otimizado, bem como o uso da terra (um outro grande benefício adicional). A cana energia seria plantada nos solos de menor qualidade, e, devido à sua maior produtividade comparativa, mais terras de melhor qualidade seriam liberadas para a cana convencional. Portanto essas inúmeras vantagens podem contribuir para a recuperação financeira daquelas usinas em difícil situação, ou aumentar bem mais a receita de outras.

Obviamente que nenhuma mudança tecnológica ocorre sem adaptações, maiores ou menores, ainda mais numa ruptura grande como a desta proposta. Tradicionalmente, há repulsa para variedades com teores de fibra acima de 13 a 15%, o que dizer, então, de teores acima de 17%, como ocorre em cana energia. Mas subentende-se que, em qualquer inovação, esforço em melhoria tecnológica é uma necessidade. Ou se estagna ou se progride. E, para progredir, há que se inovar.