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Arnaldo Cesar da Silva Walter

Professor da Faculdade de Engenharia Mecânica e do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético da Unicamp

Op-AA-15

Cogeração nas usinas de açúcar e álcool: oportunidades perdidas e uma nova janela de oportunidades

Cogeração é a tecnologia de produção combinada de potência e calor (e/ou frio), haja ou não produção de excedentes de qualquer um dos dois produtos. Cogeração é tecnologia tradicional nas usinas de açúcar e etanol, no Brasil e no mundo, em função da disponibilidade de resíduos com características combustíveis (bagaço) e a significativa demanda térmica na forma de vapor de baixa pressão.

No Brasil, uma típica usina de açúcar e etanol é, ao menos, auto-suficiente do ponto de vista do abastecimento elétrico e térmico, durante o período da safra. Tal estágio foi alcançado no início dos anos 90, em São Paulo, e em meados da mesma década no Brasil. Nas usinas, a produção e a comercialização de eletricidade excedente teve início nos anos 80, primeiramente no Nordeste, em função de uma crise de abastecimento elétrico, e depois em São Paulo.

Por sua vez, o marco regulatório para produção e venda de excedentes começou a ser criado em meados dos anos 90, e tem evoluído desde então, embora de maneira relativamente tímida. Algumas usinas têm feito investimentos para gerar e comercializar excedentes de energia elétrica e estima-se que cerca de 20% das usinas brasileiras, a maioria delas em São Paulo, esteja produzindo e comercializando energia elétrica excedente.

Entretanto, a capacidade instalada de geração está, significativamente, abaixo do potencial associado à produção de cana. Segundo os dados da Aneel – Agência Nacional de Energia Elétrica, a capacidade instalada de geração elétrica, a partir de bagaço de cana, somava pouco mais de 3.000 MW, no final de 2007, em 234 usinas.

Considerando que no Brasil existem hoje, ao menos, 360 usinas em operação, a capacidade instalada deve superar 3,5 GW, ou seja, pouco mais de 3% da capacidade instalada no Brasil. No estado de São Paulo, em 146 usinas, a capacidade instalada é estimada em 1.700 MW, sendo que 900 MW podem ser comercializados.

O potencial depende de um certo número de fatores, que incluem a tecnologia do sistema de cogeração (e.g., pressão e temperatura do vapor gerado), a disponibilidade de biomassa (e.g., com recuperação da palha, o potencial aumenta) e do regime de operação do sistema (i.e., apenas na safra ou geração todo o ano).

Como exemplo, se considerarmos a operação dos sistemas com geração de vapor a 82 bars, 480°C, que não é a melhor tecnologia comercialmente disponível no Brasil, sem redução da demanda de vapor de processo, sem uso da palha e geração elétrica apenas durante a safra, o potencial seria de, pelo menos, 6.000 GW, considerando o nível de moagem de cana em 2006 (425 milhões de toneladas de cana).

Para a mesma escala de moagem e os mesmos parâmetros de geração de vapor, mas com aproveitamento de 40% da palha e com redução da demanda de vapor de processo, o potencial seria da ordem de 9.000 GW, considerando apenas a operação dos sistemas durante a safra. Portanto, conservadoramente, pode-se estimar que o potencial em médio prazo é de duas a três vezes maior do que a capacidade ora instalada.

Por outro lado, considerando que a produção de cana deve chegar a 730 milhões de toneladas em 2012, e pode superar 1 bilhão de toneladas em dez anos, o potencial de produção de energia elétrica, a partir da biomassa residual da cana, poderia ser duas a três vezes superior ao indicado acima. Evidentemente, que se trata de um potencial extremamente significativo, tendo em vista a necessidade de expansão da capacidade de geração elétrica no Brasil, nos próximos 10-20 anos.

Por que em mais de 20 anos o potencial de cogeração não foi bem aproveitado? Há condições para que tal situação inverta-se? Quais são as dificuldades? Investimentos em cogeração, por sua natureza, envolvem múltiplos aspectos e interesses de diferentes atores. Mesmo quando há claras vantagens de economia de energia primária, como é o caso dos países que têm sistemas predominantemente termoelétricos, há significativas dificuldades para viabilizar a cogeração em larga escala.

O setor elétrico brasileiro tem características próprias, tais como a importância histórica e a natural prioridade que é dada à geração hidrelétrica, a cultura das grandes obras, a tradição do planejamento centralizado, por tantos anos praticado, etc. Nesse contexto, as dificuldades da cogeração são conseqüentemente maiores. Entretanto, ao longo dos anos, parte das barreiras – fundamentalmente aquelas que eram decorrentes da falta de conhecimento ou de preconceito – têm sido superadas.

Contudo, os potenciais benefícios da cogeração a partir da biomassa residual da cana, durante os meses de safra (que coincidem com o período hidrolo-gicamente desfavorável, no caso das usinas no SE/CO do país), ainda não foram devidamente reconhecidos. A lógica da expansão da capacidade de geração elétrica (em até 5 anos), baseada em leilões, não trouxe vantagens para os investimentos em cogeração.

Ao contrário, os potenciais investidores estão cada vez mais seguros das dificuldades de competir com profissionais interessados em viabilizar empreendimentos baseados, por exemplo, em óleos combustíveis e carvão mineral. Já do lado do setor sucroalcooleiro, em geral, os investimentos em cogeração não são priorizados, pois alguns empresários não reconhecem a importância de diversificação de suas atividades. Vários deles têm percepção do alto risco associado e todos sabem que o mesmo montante investido no negócio tradicional (produção de etanol e açúcar) terá remuneração mais segura e mais significativa.

Em adição, a visão conservadora de alguns empresários do setor impede que os investimentos em co-geração sejam feitos por produtores independentes de eletricidade (que comprariam a biomassa e venderiam eletricidade e vapor) e até mesmo que algumas medidas clássicas de fomento às fontes renováveis e à cogeração sejam aceitas (por exemplo, contratos de venda da eletricidade por 10-15 anos).

Completando o quadro adverso, o conjunto de medidas, de fomento à cogeração, nunca foi completo, às vezes com falhas na definição das tarifas, às vezes com timidez na concessão de benefícios, etc. Nesse contexto, é natural que a expansão da cogeração tenha sido lenta e que o potencial tenha sido subaproveitado. O que pode ser feito?

Entretanto, há uma janela de oportunidades: investimentos estão sendo feitos em novas unidades industriais, na ampliação de unidades existentes e na substituição de equipamentos instalados há muitos anos. Se os investimentos em cogeração não forem feitos neste momento, o potencial ficará perdido, durante 25 a 30 anos. Em adição, o combustível dos sistemas de cogeração – bagaço, hoje, e mais a palha, no futuro – será queimado, haja ou não produção de eletricidade excedente.

Além disso, praticamente todos os equipamentos necessários são produzidos no Brasil, e os custos da eletricidade gerada não são maiores do que os das demais tecnologias de geração. Por outro lado, o que o país tem a ganhar com a geração de eletricidade a óleo combustível ou carvão importado? É razoável que, em nome de uma pretensa racionalidade, que não permite a geração em larga-escala com biomassa da cana, em função do risco de eventual vertimento d’água nos reservatórios, tenhamos de aceitar soluções de mitigação de risco de racionamento, que são inviáveis econômica e ambientalmente?

Políticas energéticas e o subseqüente planejamento e regulação são guiados por prioridades. O potencial de cogeração com biomassa residual da cana ainda está longe de ser efetivamente viabilizado, porque a alternativa jamais foi priorizada, e não por causa de barreiras intransponíveis. Evidentemente, que a cogeração nas usinas de cana não é uma panacéia, que todo o potencial técnico não pode ser viabilizado, que há barreiras que não podem ser superadas em curto prazo e que há necessidade de desenvolvimentos tecnológicos (por exemplo, a recuperação da palha e sua queima em geradores de vapor). A decisão política de viabilizar parte significativa do potencial existente não é a única ação necessária, mas é a mais importante. Tomada a decisão, os demais problemas poderão ser resolvidos, e a contribuição da cana na matriz elétrica brasileira será significativa.