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Maurílio Biagi Filho

Presidente da Maubisa, da Bioenergética Aroeira e da Agrishow

Op-AA-34

A volta por cima

Embora muita gente não esteja ligando para o que se passa entre as lavouras de cana e os consumidores de etanol, é preciso registrar que o agronegócio canavieiro vive uma transição histórica decorrente da crise financeira global. Bem ou mal, o crash de 2008 colocou, definitivamente, para dentro do setor novos players, cujo poder de negociação pode dar um novo e amplo status internacional aos biocombustíveis brasileiros.

Calcula-se que, nessa transição, iniciada no final do século XX, cerca de um terço da capacidade de processamento da cana passou de grupos usineiros tradicionais para capitais internacionais, alguns atuantes há décadas no mercado brasileiro.  Muitos produtores de cana, de açúcar e de álcool ainda não entenderam o que pode significar, no setor, a presença de nomes como ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus.

Foi uma mudança natural no âmbito da globalização dos negócios com commodities alimentícias e energéticas. Atuando ao lado das gigantes brasileiras Cosan e Copersucar, essas multinacionais tendem a dar uma nova estatura à mais antiga agroindústria do Brasil. Ademais, não podemos nos esquecer de que o setor canavieiro passou a contar, nos últimos anos, com a participação de um player muito especial.

Antes apenas consumidora de etanol, a Petrobras agora está dentro, associada a vários produtores de peso, o que lhe permite desfrutar de informações estratégicas sobre custos de produção e outras variáveis.

Embora tenha determinado à Petrobras que invista em etanol e biodiesel – até para fazer sua parte na política de inclusão social, mediante a compra da produção dos pequenos agricultores familiares –, o governo passou a priorizar a extração de petróleo da camada Pré-sal, descoberta em meados da década passada.

É uma decisão econômica que praticamente inibe as perspectivas de melhora imediata da nossa matriz energética – disparada, a mais limpa do planeta, deixando a segunda colocada na poeira.

Ainda que os especialistas não se cansem de vaticinar o fim do petróleo, tudo indica que se passarão décadas, talvez mais de um século, até se esgotarem todas as possibilidades dos combustíveis fósseis.

Diante do comportamento contraditório do governo, os produtores de combustíveis renováveis estão numa saia justa. Mesmo assim, não faz sentido desanimar ou cair em depressão por causa de todas as recentes mudanças da conjuntura econômica e energética.

A situação mudou, mas não é o fim do mundo. Bem ao contrário, a transição que vivemos pode ser o início de uma nova era, bem mais promissora do que a anterior.

Essa percepção positiva cairia bem não apenas junto aos produtores, mas entre as lideranças setoriais e nas entidades de classe.

Como na metáfora que recomenda “fazer do limão uma limonada”, o agronegócio canavieiro precisa transformar a crise numa tábua de salvação, mas sem perder a noção de que os combustíveis renováveis, infelizmente, não estão em primeiro lugar na ordem geral das coisas.

Basta prestar atenção no comportamento das autoridades energéticas. Primeiro, a Agência Nacional do Petróleo, do Gás Natural e dos Biocombustíveis (ANP) ampliou seu nome, mas continua voltada exclusivamente para o petróleo.  Além disso, é preciso lembrar que o setor sucroenergético perdeu espaço junto ao governo.

Se, durante seus oito anos de mandato, o presidente Lula fez do etanol um exemplar cavalo de batalha da diplomacia brasileira, o atual governo, mais de uma vez, já deixou claro que não confia nos usineiros. Em três ocasiões, fui testemunha da insatisfação do Planalto com o setor. Em todas elas, faltou diálogo.

O que precisamos ter claro é que pagamos, hoje, por erros crassos que solaparam a credibilidade do setor. Para lembrar apenas um caso, cito o episódio de 1989, quando “faltou” etanol nas bombas de combustível. Na realidade, “faltaram”, porque, nas usinas, o produto estava estocado por ordem do Conselho Nacional do Petróleo (CNP), que só pensava em combustíveis fósseis.

Ora, todo mundo lembra que, naquela época, o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) determinava o que cada usina devia produzir, enquanto o Conselho Nacional do Petróleo (CNP) ditava os volumes de comercialização dos combustíveis. A liberdade de ação das usinas era mínima.

Entretanto, até hoje, pouca gente sabe que a “falta” de etanol nos postos, em pleno início de safra no Centro-Sul, foi provocada pelo próprio CNP, ao autorizar a distribuição, naquele mês, da metade do volume do produto consumido normalmente. Essa medida do CNP, tomada para favorecer o consumo de derivados de petróleo, especialmente a novidade chamada metanol, abalou a credibilidade do etanol num momento em que, para atender à demanda, a indústria automobilística fabricava praticamente 100% de carros a álcool.    

Evidentemente, o plano de substituir o etanol (renovável) pelo metanol (de origem fóssil) fracassou, mas quem pagou o pato junto à opinião pública foi a agroindústria alcooleira, sempre muito deficiente em termos de comunicação de massa. Na realidade, os dirigentes do setor não tiveram coragem de denunciar a manobra do CNP.

Embora a Petrobras tenha iniciado a produção de metanol em suas plantas, posteriormente desativadas, até hoje há usineiros achando que, naquela ocasião, não apenas faltou álcool, mas que a culpa cabia ao próprio setor, acusado de “desviar” a matéria-prima para a fabricação de açúcar em detrimento da produção de etanol.  

Além de pesar até hoje sobre a imagem dos usineiros, esse lamentável episódio jamais esclarecido fez o carro a álcool perder espaço rapidamente no mercado. Queda inexorável. Basta lembrar que a produção do combustível renovável só se recuperou a partir de 2003, graças ao lançamento do carro flex.

Depois de tantos erros e acertos, um balanço sumário da situação indica que a agroindústria canavieira ocupa hoje mais de 8 milhões de hectares, produz mais de 20 bilhões de litros de etanol (era para ser mais de 30 bilhões) e tem condições de ir muito além, pois, independentemente do Pré-sal, o horizonte dos combustíveis renováveis é imensurável.

No entanto o setor está fechado num silêncio nunca visto anteriormente. Como se tivesse perdido a identidade e esperasse a ascensão de um líder com coragem para esclarecer a opinião pública, apontar os erros cometidos e mostrar o caminho da reestruturação e da expansão a longo prazo.

Claro que não se pode deixar de pressionar os responsáveis pela elaboração de um plano energético de verdade, que inclua a solução dos gargalos agrícolas, industriais, logísticos e tecnológicos na área dos combustíveis renováveis. Se as autoridades fizerem a sua parte, o setor tem plenas condições de dar a volta por cima, oferecendo respostas satisfatórias às demandas do mercado brasileiro e até de parcelas do mercado internacional. Basta lembrar que, nos últimos 40 anos, nenhum ramo da economia nacional cresceu tanto e tão continuamente quanto a agroindústria canavieira.