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Alexandre Bertinardi Strapasson

Diretor do Departamento de Cana-de-açúcar e Agroenergia do Ministério da Agricultura

Op-AA-15

Cogeração com bagaço de cana-de-açúcar: a energia do campo

Falar de cogeração requer um pouco de análise histórica e das tecnologias futuras. Até pouco tempo atrás, a cogeração com bagaço de cana, no Brasil, era vista como algo secundário dentro da agroindústria canavieira. O bagaço era tido como um resíduo, formando imensas montanhas ao lado do parque industrial. A idéia era eliminá-lo a qualquer custo.

Não havia grandes preocupações com a eficiência térmica dos processos de transformação de energia, já que a matéria-prima era abundante e barata. Ampliar e aprimorar a unidade de geração de energia significava reduzir a capacidade financeira das empresas para novos investimentos, voltados à ampliação da produção de açúcar e álcool, ou seja, do core business do empreendimento.

Essa vantagem comparativa canalizou recursos desse setor para a construção, reforma e ampliação de usinas, pois a energia não remunerava o suficiente para reorientar parte dos investimentos. Os outros usos para o bagaço, como ração animal, compostagem e aplicações madeireiras, sempre foram pouco significativos, em relação ao total.

Portanto, a questão essencial para o sucesso da cogeração está relacionada ao custo de oportunidade do projeto. Nos últimos anos, muita coisa mudou, mas ainda há muito por se fazer. Melhoraram as condições de infra-estrutura e acesso às linhas de transmissão para muitas usinas. A energia elétrica passou a remunerar melhor esse tipo de energia, aliás, um grande passo foi obtido com o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica do Governo Federal.

A maioria das usinas já é auto-suficiente em energia e exporta excedentes para a rede. Também surgiram alguns projetos no âmbito do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo do Protocolo de Kyoto, que agregaram renda às usinas que investiram no mercado global de carbono, através de seus sistemas de cogeração. Por outro lado, o avanço da cogeração ainda requer melhores condições de mercado e de acesso à rede.

Aliás, parte dos benefícios também deveria chegar aos produtores rurais independentes, que fornecem cana às usinas. O bagaço de cana é uma fonte de energia estratégica para o país. Na região Centro Sul, onde está concentrada a maior parte da produção canavieira, a safra ocorre justamente no período de baixa do nível dos reservatórios das hidrelétricas.

Portanto, a cogeração com bagaço, embora possua uma característica de oferta concentrada ao longo do ano, possibilita uma integração quase perfeita com a geração hidráulica, melhorando a segurança do sistema elétrico interligado. É preciso mudar o paradigma. Em pouco tempo, as usinas não serão mais somente indústrias de açúcar e álcool, mas biorefinarias.

É importante observar que somente 1/3 do conteúdo energético da cana-de-açúcar está no caldo que é destinado à produção de açúcar e álcool. Outro terço está no bagaço, destinado à cogeração, e o terço restante na palha, que normalmente permanece como cobertura de solo, no caso da colheita mecânica, ou é queimada, no caso da colheita manual.

Estudos mostram que podemos remover até metade da palha deixada no campo e destiná-la à cogeração de energia, sem comprometer os benefícios da cobertura de solo. Porém, o problema ainda reside no custo de carregamento e transporte dessa palha, que possui uma densidade volumétrica muito baixa, o que poderá ser resolvido com novas tecnologias e preços melhores para a energia contratada. Portanto, ainda se utiliza muito pouco da energia total disponível no vegetal.

A cana é uma usina viva. Através da fotossíntese, a planta absorve o dióxido de carbono da atmosfera e o transforma em carboidratos. Os compostos primários obtidos são convertidos em cadeias mais complexas, responsáveis pelo armazenamento de energia, como a sacarose e o amido, e pela estrutura do vegetal, como a celulose e a hemicelulose.

Atualmente, utilizamos somente a sacarose para a produção de álcool, através da fermentação alcoólica. No caso do milho, utiliza-se o amido. No entanto, ainda não utilizamos a celulose e a hemicelulose, que são polissacarídeos. Em um futuro próximo, obteremos álcool também dessas estruturas, aumentando em muito a produção de álcool, por unidade equivalente de área plantada.

O Brasil está avançando muito no domínio comercial desse tipo de tecnologia. Quebrar essas estruturas não é um processo simples. Os vegetais não construíram esses compostos para serem utilizados como fonte de energia. Para isso, desenvolveram também um composto chamado lignina, que combinado com a celulose e a hemicelulose, propicia resistência e evita a degradação dessas estruturas. Mas, o que isso tem a ver com a cogeração?

É que o bagaço e a palha também poderão ser utilizados para a produção de álcool e outros compostos químicos. Ao final da rota de obtenção de álcool lignocelulósico ainda teremos a lignina, de alto poder calorífico, que poderá ser destinada à cogeração. Desta forma, mesmo com a entrada de uma segunda geração tecnológica, a cogeração continuará a existir, até mesmo devido à demanda energética da usina.

Por outro lado, a biomassa pode também ser transformada em gás de síntese e destinada à produção de diversos compostos químicos, pelo processo de Fischer-Tropsch, mas seu uso em larga escala ainda encontra barreiras tecnológicas e de viabilidade econômica. O mercado irá dizer o que será mais rentável fazer com o bagaço e a palha, e buscará o equilíbrio.

Tudo isso sem falar dos aumentos de eficiência energética possíveis de serem obtidos de imediato, através da substituição de caldeiras obsoletas e mal dimensionadas, por outras mais modernas. Já há, inclusive, linhas de financiamento público para esse tipo de retrofit. Muito se fala sobre a gaseificação do bagaço para a cogeração.

Nesse caso, poderíamos aumentar ainda mais a eficiência total do sistema e a energia útil gerada, sobretudo utilizando ciclo combinado, dado pelo acoplamento de uma turbina a gás (ciclo Brayton) a um sistema a vapor (ciclo Rankine), e também consumindo o rejeito térmico do processo. No entanto, ainda predomina o ciclo a vapor nas usinas existentes, por uma questão de custo e retorno do investimento nas condições atuais.

Até o efluente líquido do processo industrial, a vinhaça, usualmente aplicada nos próprios canaviais, pode ser fermentada para a produção de biogás, que pode ser incorporado a um sistema de geração. Mesmo após a biodigestão, suas propriedades fertilizantes não são prejudicadas. Investir em cogeração é uma oportunidade para o país diversificar sua matriz energética, melhorar a segurança do sistema elétrico, agregar renda ao campo e à indústria, e ainda aumentar a participação das energias renováveis, evitando uma demanda adicional de outras fontes, como o gás natural, carvão e óleo combustível, promotores de gases de efeito estufa. São novos desafios para a agroindústria canavieira, aquecida pela forte demanda por etanol. O Brasil é líder mundial em agroenergia e não pode abrir mão dessa oportunidade.