Me chame no WhatsApp Agora!

Maurílio Biagi Filho

Presidente da Maubisa

Op-AA-33

O verde aguado

“Onde o carro está pegando?” Muitas pessoas me perguntam, preocupadas com a situação do setor sucroenergético, confrontado nos últimos anos por uma crise que se caracteriza, basicamente, por uma tríplice queda – caiu o rendimento da lavoura canavieira, diminuiu a produção de etanol e aumentou dramaticamente o endividamento das usinas. Em consequência, o setor não gera recursos para investir, e o etanol perde espaço no mercado consumidor.

Na prática, o carro foi parar no acostamento por uma série de eventos, uns inerentes ao processo produtivo no âmbito agrícola – geadas, estiagens, não renovação dos canaviais, menor uso de insumos por falta de recursos, etc.; outros eventos resultam de fatores conjunturais e estruturais que pressionam pelo achatamento do valor do etanol. Sem dúvida, o que mais contribuiu para o atual impasse do setor sucroenergético foi o “congelamento” do preço da gasolina nos últimos oito anos.

Usada como ferramenta no combate à inflação, a estabilização forçada dos preços dos combustíveis determinou a quebra da paridade econômica entre a gasolina e o etanol, que ficou no pior dos mundos: além de não oferecer resultados para o produtor, não é vantajoso para o consumidor.

Na segunda quinzena de junho último, quando se chegou a acreditar em medidas pró-correção do problema, o governo autorizou apenas o reajuste do preço da gasolina, deixando o etanol ir pela ribanceira. Até quando?  

Mantida a disparidade atual, o etanol não tem futuro. O que sobra para o nosso combustível renovável de cana é o papel de aditivo – o mesmo papel que ele vem cumprindo desde muito antes do Programa Nacional do Álcool, criado em novembro de 1975. A meu ver, esse é um papel incompatível com o peso da agroindústria canavieira na matriz energética.

Em pouco mais de 30 anos, o setor saltou de pouco mais do que zero para quase 20% na produção de energia primária. De dois ou três anos para cá, o carro parou ou passou a andar para trás. Precisamos aprender com esses reveses, que se repetem com frequência na história econômica do Brasil.

Bem a propósito, no último dia 4 de junho, participei de um seminário no IEE - Instituto de  Eletrotécnica e Energia da USP. A reunião foi convocada pelo seu presidente, o professor Ildo Sauer, ex-diretor da Petrobras, que convidou diversas figuras do mundo empresarial e político, inclusive o ex-governador Paulo Egydio Martins, num esforço para organizar a memória da contribuição do setor canavieiro ao abastecimento energético e ao desenvolvimento nacional.


De minha parte, tive a oportunidade de lembrar episódios de que participei, com meus mais de 50 anos de vivência no meio canavieiro. Muito antes do Proálcool, por exemplo, toda a frota da Usina Sta Elisa (fundada em 1936) consumia uma mistura meio a meio de etanol e gasolina.

Em outras usinas, também se praticava essa forma “caseira” de baratear os custos de produção, numa época em que o etanol era um subproduto de baixíssimo valor. Isso ocorreu não só na década de 1960, mas também nos anos 1950, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45) nos anos 1930 e até na década de 1920, quando o Brasil não produzia petróleo e precisava importar combustíveis líquidos.

Há quem prefira esquecer certos episódios cruciais da nossa história econômica. Alegando que a agroindústria canavieira é o elo mais fraco da cadeia dos combustíveis líquidos, alguns recomendam evitar conflitos com os big players do mercado. Sinceramente, não vejo vantagem em ficar calado nessa briga de pesos-pesados.

O hábito do “deixa pra lá” pode ser útil a curto prazo, mas, a longo prazo, é nocivo porque impede que se chegue a decisões objetivas. O nosso conformismo de agricultores não deve nos levar a esquecer que energia é poder. A omissão custa caro. O medo não é bom conselheiro. Por isso, trazer à luz certos episódios é um exercício importante para a compreensão dos fatos históricos. Depondo no encontro do IEE, recordei o episódio do final da década de 1980, quando o presidente da Petrobras convidou os dois principais dirigentes do setor sucroalcooleiro para uma reunião na sede da empresa na rua Chile, no Rio.

Preocupado com o rumo das coisas, ele propôs que fossem juntos à direção na Anfavea para sugerir que a indústria automobilística passasse a produzir 50% de carros a álcool e 50% a gasolina. Como a indústria vinha fabricando 98% de carros a álcool, a Petrobras temia ter de enfrentar um duplo problema:

1. o crescimento das exportações das sobras de gasolina a preço gravoso;
2. o risco de faltar etanol no futuro.

Por falta de visão da cúpula sucroalcooleira, amplamente apoiada pelas bases, a proposta não foi aceita. Pecamos pela soberba. Naquele momento, nós usineiros nos sentíamos onipotentes. Toda semana vinha gente de outros países “estudar” o Proálcool, que parecia a saída definitiva para a crise do petróleo. Havíamos perdido a noção do nosso tamanho. Éramos um gigante com os pés de barro. 
   

Algum tempo depois, começou a faltar etanol. No início pareciam episódios isolados, mas, aos poucos, o problema se generalizou, a ponto de configurar uma estranha crise de abastecimento, inclusive nos postos de Ribeirão Preto, epicentro da produção nacional de álcool.

Como presidente da Sta Elisa, sentindo-me na obrigação de buscar informações concretas, fui pessoalmente ao terminal de combustíveis localizado no anel viário de Ribeirão Preto, onde as distribuidoras operavam em forma de pool. Lá, o gerente do terminal me mostrou o documento com papel timbrado do Departamento Nacional de Combustíveis: o volume de etanol autorizado para distribuição havia sido reduzido à metade.  

Como podia faltar etanol se, num levantamento informal, eu havia constatado um estoque de cerca de 280 milhões de litros em usinas do estado de São Paulo? E, em algumas unidades, a safra já se iniciava. Minhas atitudes geraram desconforto, mas ninguém veio a público confirmar ou negar aquele número (muitos anos mais tarde, fiquei sabendo que o DNC mandara fazer um levantamento, tendo comprovado – sem divulgá-lo – que o estoque era de 298 milhões de litros).   

A esta altura, retratados como omissos e irresponsáveis, os usineiros eram acusados de negligenciar a produção de etanol em favor da fabricação de açúcar. A produção de carros a álcool começou a despencar. Em poucos anos, chegaria perto do zero.

A crônica dessa época é negativa para todos os envolvidos na cadeia dos combustíveis líquidos. Várias medidas paliativas foram implementadas, com resultado apenas parcial, como a mistura MEG (metanol + etanol + gasolina), a adição de gasolina no hidratado e a importação de etanol de milho dos EUA.

Algumas áreas do governo imaginaram inclusive a possibilidade de introdução do MTBE, derivado petroquímico produzido a partir do metanol e do isobutileno, em substituição ao etanol anidro, mas essa medida não foi levada adiante. Pouco depois, o uso do MTBE foi abandonado nos próprios EUA, onde floresceu durante a década de 1980. O etanol levou mais de uma década para se recuperar.


Ressurgiu das cinzas em 2003, graças aos carros flex desenvolvidos pela indústria automobilística em parceria com institutos nacionais de pesquisas. Internacionalmente, com a mudança dos parâmetros ambientais, o etanol passou a ser visto como um potencial oxigenador da gasolina. Em consequência, o setor agroenergético brasileiro atraiu a atenção de diversos investidores interessados não só no etanol, mas no nosso açúcar.

Para não perder a onda, muitos usineiros tomaram empréstimos para investir no aumento da produção. Confiante na expansão do setor sucroalcooleiro, o governo autorizou a Petrobras a planejar refinarias aptas a produzir menor proporção de gasolina do que as antigas plantas de refino.  

Tudo ia aparentemente muito bem para o setor sucroenergético quando a conjuntura mudou. Primeiro, em dezembro de 2007, veio o anúncio da descoberta de grandes jazidas de petróleo na camada pré-sal da plataforma continental brasileira.

Em seguida, no início do segundo semestre de 2008, estourou a crise financeira internacional, cujos reflexos estão presentes até hoje na economia mundial.
No setor sucroalcooleiro, muitos investimentos foram cancelados, podando projetos e levando diversas usinas endividadas a ceder o controle acionário a capitais de fora.

Apesar de toda essa reviravolta, o Brasil chegou ao fim da primeira década do século XXI com números extraordinários no setor sucroenergético, destacando-se a produção de quase 30 bilhões de litros de etanol por ano graças à colheita de mais de 600 milhões de toneladas de cana em 8 milhões de hectares de terra. Pela segunda vez na história (a primeira fora em 1987/88), o consumo de gasolina foi superado pelo de etanol.   

Até hoje, muita gente não entendeu o que aconteceu. Por lamentável omissão, nós usineiros deixamos de comunicar ao público o que realmente havia acontecido. Entretanto, se confrontarmos a situação de hoje com o que ocorreu durante a crise de abastecimento do final dos anos 1980, veremos que, mais uma vez, tivemos uma combinação de empáfia, falta de visão estratégica e omissão.

No passado, nos omitimos por medo da opinião pública. Em anos recentes, irresponsavelmente, não nos preocupamos em questionar a hipótese oficial, naturalmente ufanista, de que o setor sucroenergético daria conta do recado.  

Basta um mínimo de senso de realidade para reconhecer que, mesmo tendo a perspectiva de uma produção adicional de mais 3 bilhões de litros de etanol a cada safra no final da década de 2000, o setor não possuía condições de acompanhar o aumento do consumo interno e sustentar as exportações projetadas para diversos países. Mais uma vez, faltou comunicação interna e externa.

Agora, quando penso em saídas para a atual situação do setor sucroalcooleiro, vejo que não basta tomar medidas tópicas, como oferecer financiamentos para as usinas renovarem os canaviais, financiarem os estoques ou investirem na produção de só um tipo de etanol (o anidro).

Em sua maior parte sem alternativa, os empresários aceitam qualquer ajuda que lhes permita trabalhar mais perto de sua capacidade instalada, o que, na região Centro-Sul, corresponde ao processamento anual de 620 milhões de toneladas de cana. Podemos chegar perto desse patamar na próxima safra, mas persiste o problema da falta de perspectiva de longo prazo.

A saída, como tenho opinado em artigos publicados na mídia nacional, é tomar medidas estratégicas a partir de um diálogo sensato que envolva todos os elos da cadeia energética – da extração de petróleo aos combustíveis renováveis produzidos em agroindústrias, tudo sob uma única e competente coordenação, incluindo o governo, a quem se impõe a organização de políticas públicas responsáveis, eficientes e duradouras.