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Celio Manechini

Consultor da CMA - Capacitação em Manejo Agronômico

Op-AA-48

Navegar ou deixar o barco ir a pique
A cultura da cana-de-açúcar foi a primeira atividade de produção agrícola implantada no Brasil, apenas 32 anos após o descobrimento da nova terra. As mudas de cana, trazidas dos Açores e da Madeira por Martim Afonso de Souza e plantadas na Capitania de São Vicente, incentivaram esse donatário a construir ali o primeiro engenho de açúcar do Brasil, o “Senhor Governador”, conhecido, a partir de 1540, como “Engenho São Jorge dos Erasmos”. 
 
Ainda nas décadas de 1530 e 1540, a lavoura da cana se expandiu para as áreas costeiras ao norte da Baía de Santos e chegou até Olinda, na Capitania de Pernambuco. Na região Nordeste, as condições de clima propiciaram produzir açúcar de melhor qualidade que o mercado europeu exigia e remunerava melhor. A produtividade agrícola era menor do que a obtida em São Vicente, mas era compensada pela maior concentração de sacarose no colmo e pela melhor qualidade do açúcar. A hegemonia brasileira na produção de açúcar durou até o início do século XVII, quando a descoberta de ouro nas Minas Gerais redirecionou o foco da Coroa portuguesa, que passou a investir na interiorização. 

Além disso, a conquista por holandeses, ingleses e franceses de áreas antilhanas produtoras de cana alterou o panorama do domínio açucareiro na Europa. Esse histórico pode parecer descabido neste artigo, mas visa realçar que, desde o início da canavicultura no Brasil, a necessidade de se reinventar continuamente e transformar problemas em oportunidades vem fazendo a diferença entre continuar navegando ou deixar “o barco ir a pique”. O setor canavieiro brasileiro já passou por fases de bonança, mescladas com crises econômicas, períodos de clima atípico, surtos de pragas e doenças da cana, além das frequentes políticas governamentais equivocadas, que inviabilizaram empreendimentos açucareiros durante toda a sua história.
 
É digno de nota um fato mais recente, que poderia ter sido o fim do cultivo da cana em grande extensão de áreas no estado de São Paulo, a proibição de queimadas nos perímetros urbanos. O Decreto Estadual 28.895, de 1988, proibia a queima dos canaviais situados a menos de 1 km de qualquer aglomerado urbano. A colheita manual sem a queima da cana implicaria maior risco de ataques de insetos e animais peçonhentos, ferimentos, incêndio acidental e outros riscos para os trabalhadores rurais. Além disso, o baixo rendimento na colheita da cana cortada manualmente, sem queimar, elevaria muito seu custo de produção. A tentativa de solução foi redirecionar as poucas colhedoras mecanizadas, então existentes nas usinas, para colher a cana crua nos perímetros urbanos.

Entretanto, era necessário definir como seriam executados, em seguida, os tratos culturais nas soqueiras, na presença da palha que permaneceria sobre o terreno após a colheita da cana sem queimar. Considerando a importância estratégica e econômica de continuar produzindo cana nos perímetros urbanos, o Centro de Tecnologia Copersucar  investiu capital e esforço em pesquisa para, inicialmente, conhecer a nova situação e, a médio prazo, desenvolver práticas agronômicas para manejar o canavial sem queima. 
 
Canaviais colhidos sem queimar, em usinas no estado de São Paulo, vinham sendo acompanhados desde 1986 pelo CTC, para avaliar a evolução da lavoura nesse tipo de manejo. Essas avaliações subsidiaram as primeiras recomendações de adubação para a cana crua, feitas pela Seção de Manejo de Solos, e indicaram as mudanças que deveriam ser feitas pela Seção de Projetos Mecânicos Agrícolas nas colhedoras, para melhorar seu desempenho na colheita da cana crua. O “Projeto Cana Crua” do CTC foi instituído a partir de 1990, para criar conhecimento para manejar canaviais sem a despalha a fogo.

Como objetivos de longo prazo, o Projeto visava avaliar os efeitos que a palha deixada no campo e a inclusão de mais palha na matéria-prima poderiam causar em todas as fases da cadeia de valor da agroindústria, no campo, no transporte e no processo industrial. Contando com equipes técnicas multidisciplinares do CTC, o Projeto conduziu centenas de experimentos em usinas cooperadas. Cada tipo de experimento era avaliado e reinstalado sobre as mesmas parcelas, após cada colheita, e visava comparar resultados, nas condições com e sem palha, para definir:

a. fontes, doses e localização dos fertilizantes minerais em soqueiras;
b. cultivo mecânico das soqueiras; necessidade e tipo de cultivo;
c. fertirrigação e complementação nitrogenada do canavial;
d. aptidão das variedades de cana-de-açúcar para manejo sem queima;
e. efeito do manejo sem queima na qualidade da matéria-prima industrial;
f. controle químico e cultural de plantas daninhas com diferentes quantidades de palha;
g. efeito da eliminação da queima sobre a população de pragas da cana-de-açúcar;
h. efeito da cobertura de palha sobre o manejo do solo e a dinâmica da água;
i. efeito da colheita mecanizada sobre o solo e a lavoura;
j. tipos de preparo do solo e plantio para o manejo da cana sem queimar.
A avaliação dos resultados obtidos a cada ano, aliados à análise dos fatores climáticos e fenológicos, permitiram concluir que a eliminação da queima e o consequente aumento da quantidade de palha introduziram mudanças no sistema de produção da cana-de-açúcar. 
 
Parte dessas mudanças representam desvantagens da cana crua, ao comparar esse sistema de manejo com o anterior, com queima. Esses efeitos foram observados logo após a primeira colheita dos ensaios sem queima e podem ser citados, como:
 
  • maior dificuldade de colheita, pelo grande volume de massa vegetal;
  • risco de pisoteio nas soqueiras, pela maior dificuldade de visualização;
  • aumento no teor de perdas na colheita mecanizada;
  • maior conteúdo de impurezas vegetais na matéria-prima;
  • risco de compactação do solo quando colhido com umidade;
  • menor eficiência do transporte devido à menor densidade da carga;
  • perda de açúcar na moagem por arraste pela fibra;
  • risco de pragas, protegidas pela palha e não mais eliminadas pelo fogo;
  • menor maturação, pelo maior período de umidade no solo. 
Outras mudanças, as benéficas, foram notadas após alguns anos de colheita sem queima. Esses benefícios são devidos à maior quantidade de palha no campo, protegendo o solo contra a ação deletéria do impacto das gotas de chuva, do vento e da radiação solar diretamente sobre sua superfície. Os maiores benefícios são devidos à:
  • eliminação da queimada e de suas consequências sobre o solo, a biosfera,  o ambiente e a população;
  • reciclagem de nutrientes e da matéria orgânica do solo;
  • eliminação das perdas de água do solo por evaporação;
  • redução do risco de erosão, pela proteção da superfície do solo;
  • possibilidade de sistematizar a lavoura, ganhando eficiência operacional;
  • eliminação da deterioração da cana, que ocorria após a queima;
  • possibilidade de mudar frentes de colheita a qualquer momento, se necessário;
  • redução do uso de herbicidas no controle de aproximadamente 90% das espécies de plantas daninhas;
  • eliminação do cultivo mecânico das soqueiras; 
  • favorecimento de macro e microrganismos úteis no solo (infiltração de água);
  • perenização dos agentes de controle biológico de pragas.
Além desses fatos, a biomassa adicional, quando queimada nas caldeiras, produz vapor para movimentar turbogeradores, transformando as usinas em unidades termoelétricas, sem o consumo de combustíveis fósseis, produzindo energia elétrica limpa e renovável, situadas próximo aos centros consumidores e produzindo energia, na época, de menor disponibilidade de água nas hidrelétricas. Os resultados de longo prazo do projeto mostraram que existem variedades de cana com maior aptidão para o manejo sem queima? entenda-se colheita mecanizada.

Essa aptidão varietal é resultado da soma das características agrotecnológicas dos colmos e morfológicas das suas touceiras. O ponto crítico do sistema de produção da cana crua é a alta intensidade de mecanização exigida, com aumento do tráfego de grandes máquinas nos talhões. Considerando apenas a colheita, a esteira da colhedora trafega duas vezes, e os pneus do conjunto trator-transbordo, no mínimo, mais seis vezes em cada entrelinha do canavial, a cada colheita. Isso aumenta muito o risco de pisoteio da soqueira e compactação do solo, tornando indispensável a adoção de tecnologias e práticas que minimizem esses riscos:

 
  • treinamento continuado em todos os níveis de gestão na usina; • padronização do espaçamento entre as linhas da cana;
  • ajuste das bitolas dos equipamentos agrícolas;
  • instalação de GPS e piloto automático nas máquinas agrícolas;
  • monitoramento local ou remoto das operações;
  • adequação da velocidade de operação ao grau de dificuldade local do canavial;
  • outras práticas que possam garantir a sustentabilidade do empreendimento, através do aumento da produtividade agrícola, da qualidade da matéria-prima e dos produtos finais e, em última análise, da redução do custo de produção do açúcar, do etanol, da energia elétrica e dos demais  subprodutos.