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Maurílio Biagi Filho

Membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República

Op-AA-23

O novo ABC da cana

Já não se pode negar que o panorama da produção de cana no Brasil mudou na passagem do século XX para o século XXI. Se, antes, os principais nomes do setor tinham tradicionais sobrenomes de imigrantes (Atalla, Balbo, Bellodi, Biagi, Ometto, Simioni etc.), agora, o alfabeto canavieiro começa com ADM, Bunge, Cargill, Dreyfus... Por coincidência, são grupos estrangeiros de grande porte que, pela primeira vez em 500 anos, deixam claro que o setor sucroenergético brasileiro amadureceu a ponto de despertar o interesse de alguns dos mais poderosos players do agronegócio internacional.

Em dez anos, a internacionalização do setor já chega a 25% da cana esmagada, mas as últimas aquisições de usinas brasileiras por multinacionais não deixam dúvidas de que vivemos um momento rico na história agrícola brasileira, justamente numa época de recordes na produção e no rendimento das lavouras mais comerciais. Nas últimas décadas, a cana foi uma das culturas que mais se expandiram no Brasil, ao lado da soja e do milho.

O crescimento do potencial canavieiro deve-se não apenas ao açúcar brasileiro (40% do mercado mundial), mas ao crescimento do valor estratégico do etanol como combustível automotivo. Desde que o Governador Geral Martim Afonso de Souza apostou na plantação de cana no litoral brasileiro, a partir de 1532, os estrangeiros lutam para produzir açúcar e derivados no Brasil.

Muitos colonos que aceitaram o desafio do plantio de cana tornaram-se senhores de engenho no Nordeste, a região de maior sucesso nos primeiros séculos da implantação da cultura no Brasil. Mas essa é uma história cheia de altos e baixos, não podemos negar. A guerra entre colonizadores portugueses e holandeses, por exemplo, teve um desfecho negativo para o Brasil no século XVII.

Além de fundarem Nova York, os holandeses, derrotados militarmente em Recife e Olinda, implantaram canaviais e montaram engenhos na América Central. Desfalcado de capitais e gestores, o Nordeste perdeu mercados numa guerra comercial nem sempre favorável a nós, brasileiros. Tanto que nossa indústria canavieira precisou ganhar incentivos fiscais do Império e, depois, ficou décadas sob tutela da República, até a desregulamentação dos anos 1990.

Até então, os grupos estrangeiros não tinham grande interesse em investir na cana devido ao controle estatal. Desde a extinção do IAA - Instituto do Açúcar e do Álcool, a indústria canavieira nacional não vivia momento de tanta renovação. Só a história dirá se o que vivemos agora não é uma repetição de algo ocorrido há um século, quando capitais europeus vieram produzir açúcar no Brasil.

Com a exceção da francesa Societé de Sucréries Bresiliennes - SSB, que se instalou em 1903 em Piracicaba, de onde comandou cinco engenhos centrais por algumas décadas, os capitais estrangeiros investidos no setor canavieiro na virada dos séculos XX/XXI não tiveram sucesso. Culpa do protecionismo governamental? Talvez.

No entanto, à sombra de centenas de usinas controladas por capitais nacionais, desenvolveu-se entre nós uma genuína indústria de equipamentos, cujos núcleos centrais estão firmemente estabelecidos em Piracicaba e Sertãozinho. A mudança no controle da indústria brasileira de açúcar e álcool é ditada pelo aumento da competição global.

A partir do momento em que as mudanças climáticas determinaram o aumento do consumo global do etanol, cresceu o interesse dos grupos estrangeiros em realizar investimentos no Brasil, cujo mercado de combustíveis configura um laboratório sem igual no mundo. Não se pode negar que, até pouco tempo atrás, perdurava a certeza de que o setor permaneceria 100% nacional – e com muito orgulho.

Apesar da venda de grandes grupos canavieiros para multinacionais, o setor sucroenergético ainda é majoritariamente nacional. É uma nacionalização que, graças ao Proálcool, adquiriu um colorido diferente a partir dos anos 1970, quando o setor passou a registrar uma forte presença de grupos nativos que, até algumas décadas antes, limitavam-se à pecuária.

Se tudo continuar evoluindo a favor do Brasil no âmbito do agronegócio em geral, tenho certeza de que, no futuro, caberá a nós brasileiros agradecer às marcas globais que vieram nos ajudar a transformar o etanol numa commodity. Mais do que uma conquista das tradings ou um êxito do setor canavieiro, terá sido uma vitória nacional.