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Marcelo Pedroso Goulart

Promotor de Justiça do Meio Ambiente de Ribeirão Preto, SP

Op-AA-09

Cultura da cana-de-açúcar na perspectiva socioambiental

1. A agricultura moderna

1.1: As Revoluções Agrícolas: Os estudiosos do desenvolvimento agrícola apontam os séculos XVIII e XIX como o período de surgimento da agricultura moderna. A primeira fase desse novo modelo de produção, chamada de Primeira Revolução Agrícola, foi construída durante a transição do feudalismo para o capitalismo na Europa Ocidental e representou a superação - inédita na história da humanidade - da escassez crônica de alimentos.

O padrão de produção resultante da Primeira Revolução Agrícola apresentava as seguintes características:

 

  • agricultura e pecuária como atividades complementares;
  • aumento da diversidade de culturas em várias propriedades;
  • a adoção de sistemas de rotação de culturas, e
  • a criação de animais para alimentação, força de tração e produção de esterco.

Os avanços científicos e tecnológicos ocorridos a partir de meados do século XIX possibilitaram aos agricultores a utilização de fertilizantes químicos e de implementos motomecanizados, proporcionando, desta maneira, a superação de dificuldades que passaram a enfrentar com a insuficiência de esterco para a adubação do solo e com a manutenção dos animais.

Inicia-se a segunda fase da agricultura moderna, conhecida como Segunda Revolução Agrícola, com as seguintes características:

 

  • distanciamento da produção vegetal da produção animal;
  • substituição dos sistemas rotacionais diversificados e consorciados, por sistemas simplificados (monocultura);
  • agroquímica com o descarte da matéria orgânica na nutrição das plantas e intensiva utilização de fertilizantes químicos;
  • apropriacionismo como processo pelo qual certos componentes da produção agrícola passam a ser realizados pelo setor industrial (insumos químicos, implementos motomecanizados, variedades genéticas selecionadas para alta produtividade, ração para alimentação animal), e
  • redução da utilização da mão-de-obra.

Esse padrão intensificou-se a partir de meados deste século e difundiu-se pelo mundo, tornando-se hegemônico na década de 70. Fala-se, então, em Revolução Verde e num modelo agrícola químico-mecânico-genético. Há maior separação da produção animal e vegetal. Os avanços do setor industrial e das pesquisas nas áreas química, mecânica e genética propiciam a homogeneização dos insumos e das práticas agrícolas, levando à internacionalização do processo de apropriacionismo e à imposição pelos países centrais aos países periféricos de um pacote tecnológico agrícola de utilização em larga escala nos sistemas monoculturais.

1.2: A agricultura moderna e os impactos socioambientais: A degradação socioambiental é um dos produtos da agricultura moderna. O padrão produtivo estabelecido a partir da Segunda Revolução Agrícola, baseado na monocultura, na exploração extenuante da terra, no uso intensivo de fertilizantes químicos e de agrotóxicos com alto poder biocida, tem provocado grandes impactos ambientais.

Eis alguns dos custos socioambientais:

 

  • erosão e perda da fertilidade dos solos;
  • dilapidação do patrimônio genético e da biodiversidade;
  • destruição florestal;
  • dilapidação dos recursos naturais não renováveis;
  • contaminação dos solos, das águas, dos animais silvestres, do homem do campo e dos alimentos;
  • surgimento de pragas resistentes;
  • aumento da presença de hormônios nos alimentos;
  • altíssimas concentrações de efluentes orgânicos, originários dos confinamentos intensivos;
  • aumento dos custos de produção;
  • concentração da propriedade e da riqueza;
  • migração, urbanização caótica e exclusão social.

2. A agricultura sustentável

A agricultura moderna está em xeque. O padrão de produção agrícola hoje hegemônico é insustentável, do ponto de vista socioambiental. Seus fundamentos estão sendo revistos e já se fala em novo padrão. Impõe-se, com urgência, um novo modelo que concilie a produção, a conservação ambiental e a viabilidade econômica da agricultura.
 
Os objetivos que compõem as propostas para uma agricultura sustentável podem ser assim sintetizados:

 

  • promoção da saúde de agricultores e consumidores;
  • manutenção da estabilidade do meio ambiente, mediante incorporação dos processos naturais, como os ciclos de nutrientes, a fixação de nitrogênio, o controle de pragas pelos predadores naturais;
  • asseguração dos lucros dos agricultores a longo prazo;
  • produção agrícola para responder às necessidades atuais da sociedade, levando-se em conta as gerações futuras. Enfim, a agricultura sustentável deve ser ecologicamente equilibrada, economicamente viável, socialmente justa e culturalmente apropriada.

O equilíbrio ecológico assegura a manutenção, a longo prazo, dos recursos naturais, a produção mínima de impactos adversos ao ambiente e a diversificação de culturas. A viabilidade econômica dá-se quando há retornos adequados aos produtores e otimiza-se a produção das culturas com o mínimo de insumos químicos.

A agricultura promove a justiça social quando satisfaz as necessidades humanas de alimentos e de renda, atende às necessidades sociais das famílias e das comunidades rurais, dirige-se à erradicação da fome, da miséria e da pobreza e possibilita a organização democrática da propriedade. A produção agrícola deve, ainda, atender às características geográficas, históricas e culturais de determinado povo.

3. O padrão de produção agrícola hegemônico, em face dos modelos de sociedade e de produção, delineados na Constituição de 1988

Ao refundar a República, o povo brasileiro, através do processo constituinte, firmou novo pacto político, consubstanciado na Constituição, promulgada em 5 de outubro de 1988, quedelineia um projeto de sociedade e de Estado democrático (democracia participativa, econômica e social), a ser construído pela cidadania e pelos agentes do Estado.

Esse projeto perpassa toda a Constituição e sua essência está sintetizada nos três primeiros artigos. Neles, encontramos os chamados princípios-essência, que consagram valores que devem, necessariamente, orientar a prática social, a ação do Estado e a interpretação das normas jurídicas. Dentre os princípios-essência, encontramos os princípios impositivos, que impõem aos agentes políticos que integram os órgãos de Estado e à cidadania, como um todo, a realização de fins e a execução de tarefas.

Os objetivos da República, como princípios impositivos, estão assim inscritos na Constituição:

 

  • construção da sociedade livre, justa e solidária;
  • garantia do desenvolvimento nacional;
  • erradicação da pobreza e da marginalização;
  • redução das desigualdades sociais e regionais;
  • promoção do bem de todos, sem preconceitos.

Os princípios-essência permeiam toda a Constituição. A ordem econômica, constitucionalmente definida, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. A ordem social, constitucionalmente estabelecida, tem como objetivo o bem-estar e a justiça sociais. Assim, a asseguração da dignidade da existência, a promoção da justiça social, a realização do bem-estar social e a promoção da justiça social são princípios-essência impositivos.

Além dos princípios-essência, a Constituição também contempla os princípios-base, as prescrições destinadas a estruturar a organização da sociedade ou de determinada atividade que a integra. No que diz respeito à ordem econômica constitucionalmente definida, os princípios-base estão assim elencados:

 

  • soberania nacional;
  • propriedade privada;
  • função social da propriedade;
  • livre concorrência;
  • defesa do consumidor;
  • defesa do meio ambiente;
  • redução das desigualdades regionais e sociais;
  • a busca do pleno emprego;
  • tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte, constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

O meio ambiente ecologicamente equilibrado foi consagrado como direito fundamental, princípio-base da ordem econômica e requisito essencial para a caracterização da função social da propriedade rural. A sadia qualidade de vida, que pressupõe o respeito ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, compõe a dignidade da existência — objetivo da ordem econômica — e o bem-estar de todos — objetivo da ordem social.

Por ser assim, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado representa faceta importante para a formação e garantia da dignidade humana — fundamento do Estado Democrático de Direito. O padrão de produção agrícola adotado em nosso país, derivado da Segunda Revolução Agrícola e fundado na monocultura, no latifúndio, na agroquímica e na redução da mão-de-obra, é concentrador.

Ao concentrar propriedade, riqueza, renda e poder, esse padrão de produção caminha na contramão do projeto constitucional de desenvolvimento, pois só faz aumentar a pobreza, a marginalização e as desigualdades sociais, além de provocar a degradação ambiental, inviabilizando a promoção do bem comum.

A propriedade que adota esse padrão descumpre a função social, fere a ordem econômica e social e frustra o cumprimento dos objetivos fundamentais da República brasileira. Nega, portanto, o projeto de sociedade democrática, delineado na Constituição. É antidemocrático, do ponto-de-vista político, e inconstitucional, do ponto-de-vista jurídico.

4. A monocultura da cana e os riscos de sua expansão

Nas regiões de monocultura da cana-de-açúcar, as terras, embora produtivas, não estão cumprindo a função social. Em primeiro lugar, porque o meio ambiente está sendo degradado. Os desmatamentos, o uso abusivo de agrotóxicos, a contaminação do solo e das águas, a poluição provocada pela queima da palha da cana são práticas rotineiras. Em segundo lugar, porque os direitos e o bem-estar dos trabalhadores nada contam para os empresários rurais. Eis alguns dos custos sociais do Proálcool:

 

  • aliciamento criminoso e superexploração dos trabalhadores rurais traduzidos em ganho por produção;
  • alojamentos precários;
  • altos índices de acidentes de trabalho;
  • morte por trabalho extenuante;
  • transporte em veículos mal conservados e inseguros;
  • exploração do trabalho de mulheres, crianças e adolescentes;
  • expulsão do trabalhador do campo;
  • urbanização caótica;
  • desemprego provocado pela industrialização da agricultura.

Fácil perceber que a superação desses problemas sociais e ambientais passa necessariamente pela mudança do padrão de produção agrícola, o que implica nova forma de organização da propriedade, com a implementação de novas políticas agrícolas e de reforma agrária.

Os Poderes Públicos têm base constitucional e legal para intervirem no processo de expansão da monocultura, controlá-lo, limitá-lo e exigir, no mínimo, estudos prévios de impacto ambiental. Além disso, garantir o cumprimento da função social da propriedade, abrir linhas de financiamento e de apoio técnico para os pequenos e médios proprietários, estimular a policultura, e realizar a reforma agrária, para efetivar modelos de agricultura ecológica, social e economicamente sustentáveis.