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Plinio Mário Nastari

Presidente da Datagro e Representante da Sociedade Civil no CNPE, Conselho Nacional de Política Energética

Op-AA-64

Etanol: reconhecimento pelo impacto ambiental
A crise da Covid-19 traz grandes desafios no curto prazo para o mercado de etanol, pelo choque simultâneo de redução no preço e no consumo. Esse efeito ocorre nos seus dois grandes mercados, EUA e Brasil. O impacto ultrapassa o mercado de etanol e afeta também, pelo menos, os de milho e açúcar. 
 
Como estão integrados com outros mercados, esse impacto pode reverberar também na soja e nas carnes. Nos EUA, em condições normais, o etanol absorve mais de 38% da oferta de milho e representa o seu maior uso, maior até do que o seu uso para ração. 
 
A crise fez com que o preço do petróleo WTI caísse de US$ 55 para menos de US$ 20 por barril. O preço da gasolina RBOB, que já chegou a US$ 2,25 por galão 18 meses atrás e estava girando em torno de US$ 1,60-1,70 por galão até recentemente, chegou, no auge da crise, a US$ 0,41 por galão e agora gravita entre US$ 0,75 e US$ 0,85 por galão. 

No curto prazo, a queda no consumo e na produção nos EUA é de praticamente 50%, caindo de pouco mais de 1 milhão de barris por dia para cerca de 500 mil barris por dia. A redução no uso de milho fez com que o seu preço caísse de US$ 4,2 para US$ 3,2 por bushel, e a alternativa aos produtores norte-americanos será exportar o atual excedente. 

Considerando que os EUA produzem cerca de 350 milhões de toneladas de milho por ano, uma redução de 19% no consumo pode representar mais de 66 milhões de toneladas. Em comparação, no Brasil, o consumo doméstico de milho para todos os usos é de 70,4 milhões de toneladas, portanto esse efeito pode afetar o preço e as exportações de milho do Brasil e da Argentina.

No Brasil, a redução no consumo de etanol, que, desde o início de março, é de mais de 20%, pode ter impacto significativo no mercado de açúcar. Em 2019, o etanol usado como combustível, misturado à gasolina (anidro) e usado na frota flex (hidratado), representou 46% do consumo de total de combustíveis do ciclo Otto (gasolina pura, etanol anidro e hidratado e GNC), uma marca inigualada em todo o mundo.

Em alguns estados brasileiros, esse percentual foi ainda maior: São Paulo, 64%; Minas Gerais, 56,5%; Goiás, 64,8%; Mato Grosso, 70,5%; e Paraná, 51,2%. Mas, diferentemente do que ocorre nos EUA, no Brasil há uma dificuldade adicional. Não se pode armazenar, nem transportar cana a longas distâncias. Uma vez colhida, a cana precisa ser processada em 24 a 48 horas.

Sua produção e processamento ocorre em sistema de fluxo, o que é realmente virtuoso como energia renovável, mas depende de um escoamento e de um fluxo de consumo relativamente permanente. É, portanto, diferente do petróleo, cuja produção ocorre pelo sistema de estoque, cuja extração é possível suspender. 

No caso da cana, isso não é possível, e a alternativa é simplesmente deixá-la no campo e perder a produção. A queda no consumo trouxe impacto direto no preço do etanol ao produtor. Em 3 de março, o preço do hidratado ao produtor em São Paulo, livre de impostos, era de R$ 2,16 por litro. Chegou a cair a R$ 1,28 por litro no início de abril e, agora, ensaia uma recuperação ao atingir R$ 1,52 por litro.
 
Graças à relativa flexibilidade industrial, a alternativa natural para aqueles produtores que podem fazê-lo é fabricar mais açúcar. O volume adicional de açúcar que poderá ser gerado depende de fatores como clima, volume de cana disponível, teor de açúcares na cana, quanto da oferta de cana será efetivamente colhida e processada e capacidade dos produtores alterarem o mix de produção, o que depende, inclusive, da opção sobre o tipo de açúcar e de etanol a ser fabricado.

Na safra 2019/2020, encerrada em 31 de março na região Centro-Sul, o mix de produção foi 34,3% para açúcar e 65,7% para etanol. Caso o mix se aproxime de 50%, o que já foi atingido antes (2012/2013), a produção potencial de açúcar pode se aproximar de 39 milhões de toneladas, apenas na região Centro-Sul. No Brasil, a produção pode chegar a 42,4 milhões de toneladas. 

Em comparação, na safra 2019/2020, a produção foi de 26,7 milhões de toneladas no Centro-Sul e 29,55 milhões de toneladas em nível Brasil. Felizmente, esse aumento de produção ocorre no momento em que o mercado convive com déficit no balanço mundial de oferta e demanda do ano comercial 2019/2020 (outubro/setembro), em função das quebras de produção, principalmente na India e na Tailândia.

Mas há limites para a capacidade de o mercado internacional absorver toda a produção adicional que pode vir do Brasil. No caso do etanol, além do capital de giro paralisado nos tanques pela redução do consumo, há o limite físico de armazenagem que, ao ser atingido, pode comprometer a continuidade da produção.  

As dificuldades no curto prazo podem ser grandes, especialmente para os produtores que não puderam ou optaram por não fazer hedge de preço do açúcar, ou para aqueles que simplesmente só fabricam etanol. Antes da crise da Covid-19, o preço do açúcar bruto no mercado mundial chegou a testar 15,5 centavos de dólar por libra-peso em Nova York, o que ofereceu oportunidade de proteção a níveis interessantes, entre R$ 1.500 e R$ 1.600 por tonelada.  
 
E, mesmo quando o preço já havia caído para 11,0 a 11,5 centavos de dólar por libra-peso, a desvalorização do real ainda permitiu proteção de preço entre R$ 1.200 e R$ 1.250 por tonelada. Mas nem toda a produção de etanol pode ser convertida em açúcar, e nem todos os produtores dispõem de linhas de financiamento para realizar essa proteção.

Com esse quadro, o curto prazo é, sem dúvida, desafiador. Mas o que esperar para o futuro? Como o mundo vai se comportar daqui para frente? É muito provável que aumentará a sensibilidade e a percepção do consumidor em relação ao impacto que suas decisões de consumo têm sobre a saúde e o meio ambiente.

Já começam a aparecer estudos, realizados por entidades de pesquisa de renome, associando a intensidade do impacto da Covid-19 à qualidade do ar nas grandes metrópoles. Como a Covid-19 afeta a capacidade pulmonar e respiratória, quanto maior for a poluição atmosférica, maior a morbidade e letalidade relacionada à infestação.

É provável que a capacidade de os consumidores associarem valor a bens ambientais aumente. Nesse sentido, acredito que há uma luz no fim do escuro túnel em que nos encontramos. Felizmente, desde o início deste milênio, a indústria canavieira e sucroenergética brasileira aumentou consideravelmente o seu grau de sustentabilidade.

A mecanização do plantio e da colheita, intensificada a partir do Protocolo Agroambiental de 2007, se mostra estratégica neste momento em que o distanciamento é praticamente uma necessidade. O aumento da flexibilidade industrial para alterar o mix de produção açúcar-etanol também.
 
A crise da Covid-19 coloca o setor do açúcar e do etanol em uma situação delicada, mas da qual deve sair fortalecido. Caso sejam adotadas as medidas preconizadas de distanciamento, as produções de cana e, principalmente, de milho devem continuar expandindo. Apesar de já ser um gigante mundial, a verdade é que, na área agrícola e agroindustrial, o Brasil ainda é um livro com muitas páginas em branco ainda a serem preenchidas.

A diversificação via cogeração para produção de bioeletricidade, via biodigestão para a produção de biogás e biometano e via aumento da produção de leveduras e captura de CO2 tende a alavancar a diversificar as fontes de geração de renda e valor. A complementaridade entre cana e milho e a compreensão de que o etanol de milho, cada vez mais, faz parte integral do mercado de etanol de cana precisam ser reconhecidas e valorizadas.

Os mercados de etanol, de energia e de proteína animal se integram cada vez mais, agregando valor e gerando produtos de alto valor ambiental e com positivo impacto à saúde. Quando mais pessoas passarem a reconhecer e enxergar essa condição virtuosa, que complementa, dá longevidade e sustentabilidade ao uso de combustíveis tradicionais de origem fóssil, o etanol e os biocombustíveis em geral receberão o reconhecimento e o valor que realmente merecem. E os ativos relacionados à sua produção deverão receber a sua consequente valorização.