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Leila Luci Dinardo-Miranda

Pesquisadora do Centro de Cana do Instituto Agronômico

OpAA70

A questão das pragas e dos nematoides em canaviais

O setor sucroenergético passou por uma mudança profunda no final dos anos 1990 e na primeira década dos anos 2000, quando a colheita de cana manual queimada foi substituída pela colheita mecanizada de cana crua.


A ausência do fogo e a presença da palha alteraram completamente a ocorrência e a importância das diversas espécies de pragas; o status de algumas delas, como cigarrinha-das-raízes, foi profunda e rapidamente alterado; para outras, como broca comum e Sphenophorus levis, o processo não foi tão nítido de imediato, mas foi igualmente marcante. É bem verdade que, no caso da broca comum, a cana crua não foi a única responsável por torná-la ainda mais relevante do que era nas décadas anteriores.


O uso de variedades mais suscetíveis, a expansão da cultura para regiões mais secas e quentes, entre outros fatores, contribuíram significativamente para incrementar suas populações e, consequentemente, seus danos.


Por outro lado, S. levis, que até final dos anos 1990 estava restrita à região de Piracicaba-SP, foi levada para outras regiões por meio de mudas retiradas de locais enfestados; a cana crua somente forneceu condições de umidade (mais elevada) e temperatura do solo (mais amena) mais favoráveis ao crescimento populacional da praga. Assim, um inseto bastante longevo e naturalmente resistente às condições adversas foi favorecido por melhores condições para sua sobrevivência.  


Se algumas outras pragas, como Migdolus fryanus, e os nematoides foram, ao que parece, pouco influenciados pela colheita de cana crua, a seca intensa e prolongada, nos últimos dois anos, associada às ondas de geada em muitas regiões em 2021, provocou outra mudança no status quo das pragas e dos nematoides, menos por beneficiá-los diretamente e mais por prejudicar sensivelmente as plantas.


Vale ressaltar que, nos campos secos, pela falta de chuvas e pelas geadas, os focos de incêndio foram assustadoramente altos em 2021, consumindo tanto canaviais em pé como os já colhidos, além, infelizmente, de imensas áreas de plantas nativas.  Devido a essas condições, mesmo os canaviais colhidos em começo de safra estão com porte reduzido, porque pouco cresceram ou, quando cresceram, porque foram “queimados” pela geada e tiveram que reiniciar o perfilhamento e o crescimento.


Embora a seca e o fogo possam ter contribuído para reduzir as populações de S. levis, mesmo que só levemente, já que larvas, pupas e, muitas vezes, adultos estão protegidos no interior dos rizomas, as soqueiras, ressequidas por dois anos de chuvas escassas e muita geada, pouco responderam ao controle químico ou biológico da praga, por estarem severamente debilitadas. Em relação à broca comum, à cigarrinha-das-raízes e aos nematoides, cujas populações devem aumentar com o início das chuvas da primavera/verão 2021/2022, os danos tendem a ser mais acentuados do que em anos anteriores, devido ao porte reduzido das plantas na maioria dos canaviais. 


É fato que as populações de broca foram reduzidas durante o período seco, porque a baixa umidade causa alta mortalidade de ovos, mas, com a entrada do período chuvoso, a tendência é de recomposição rápida das populações, pois a capacidade reprodutiva da praga é elevada; nesse contexto, é imprescindível proceder ao monitoramento das populações e à adoção das medidas de controle, assim que necessárias, com o intuito de proteger os entrenós basais, já que as galerias feitas pela broca nesses entrenós prejudicam o transporte de água e nutrientes para as folhas, onde ocorre a fotossíntese, bem como o acúmulo dos fotossintetizados.


A seca em si pouco afetou as populações de cigarrinha-das-raízes, que, nessa época do ano, sobrevive no estágio de ovos em diapausa, resistentes à falta de água no solo; o fogo, no entanto, matou os ovos colocados mais superficialmente no solo, embora aqueles ovipositados nas camadas mais profundas não tenham sido afetados. O efeito mais significativo do fogo se dará pela ausência da palha: devido a ela, haverá maior perda de água pelo solo por evaporação, o que deve prejudicar o crescimento populacional da cigarrinha no início do período chuvoso; essa restrição, entretanto, tenderá a desaparecer com o estabelecimento regular das chuvas.


Assim, embora as condições das áreas queimadas possam ser mais restritivas para o desenvolvimento inicial da cigarrinha-das-raízes, será preciso redobrar os cuidados no manejo, por dois motivos:  assim como a broca, a cigarrinha tem alta capacidade reprodutiva, e suas populações podem aumentar rapidamente, e porque a maioria dos canaviais estarão com porte reduzido, sendo, portanto, sujeitos a danos mais significativos, uma vez que os danos sofridos pelas plantas são inversamente proporcionais ao seu porte por ocasião do ataque.


A mesma reflexão vale para os nematoides: as populações de nematoides normalmente se reduzem no período seco do ano, porque eles são altamente dependentes de umidade no solo e porque são parasitos obrigatórios, precisando de raízes para sobreviver; como as plantas perdem raízes na época seca do ano, as populações de nematoides diminuem. Com a entrada do período chuvoso, entretanto, as suas populações tendem a crescer rapidamente e poderão causar severos danos aos canaviais, pois quanto menores as plantas, menos tolerantes são aos nematoides, sofrendo maiores danos.


As condições climáticas adversas dos últimos anos acentuaram os danos causados pelas pragas e nematoides e revelaram a dificuldade de controle de muitas delas. Com isso, ficou ainda mais evidente que o manejo de áreas infestadas não pode ser baseado somente no uso de inseticidas/nematicidas químicos. Embora tais produtos sejam imprescindíveis para reduzir as populações de pragas e de nematoides, em muitas situações, são insuficientes para resolver o problema. É preciso inserir outras medidas num amplo programa de manejo.


Áreas de reforma deveriam, sempre que possível, passar por rotação de culturas, com plantio de soja, amendoim ou crotalárias; são amplamente conhecidos os benefícios da rotação sobre a qualidade do solo, a dinâmica das populações de pragas, doenças e plantas daninhas, resultando em maior sustentabilidade da produtividade agrícola. 


O uso de matéria orgânica, como torta de filtro pura ou em compostagem com vinhaça e nutrientes, também deveria ser prática adotada em plantio e soqueiras; o efeito dessa medida sobre as pragas e nematoides é nulo, mas a melhoria do ambiente para as plantas é evidente, e, com isso, elas tendem a suportar melhor o seu ataque.


A associação de inseticidas/nematicidas químicos e biológicos é outra ferramenta que pode se mostrar vantajosa, pois pode haver menor interferência em toda a entomofauna do canavial. 


No caso específico de S. levis, o manejo de áreas infestadas deve ser iniciado na definição das áreas de reforma, que, sempre que possível, devem receber o último corte no início da safra, para que possam ser erradicadas com eliminador mecânico de soqueira e deixadas em vazio sanitário por pelo menos 6 meses, para que as populações de S. levis sejam significativamente reduzidas. Parece incongruente sugerir destruição mecânica da soqueira e pregar por medidas mais sustentáveis. No entanto, como qualquer praga de solo, o controle de S. levis é difícil, pois a praga passa grande parte de sua vida protegida nos rizomas. Assim, o não uso de erradicador de soqueira exigirá vazio sanitário bem mais longo do que os 6 meses preconizado para quem o usa, talvez um ano ou dois...


Enfim, é preciso investir na recuperação dos ambientes de produção, dando às plantas condições para melhor resistirem ao ataque de pragas e de nematoides, suportando melhor seus danos. Isso significa que é preciso adotar medidas de manejo que levem a cultura da cana-de-açúcar a um novo patamar, ainda mais sustentável do ponto de vista ambiental.