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Raffaella Rossetto

Pesquisadora científica do Centro de Cana-de-açúcar do IAC/APTA/SAA

OpAA71

O cultivo conservacionista da cana-de-açúcar: esperança ou atitude?
Quando eu ainda era aluna do curso de agronomia da Esalq-USP, aprendi com meus mestres as noções de fertilidade do solo e da importância da análise do solo para fins de fertilidade, como forma de buscar subsídios para saber se o solo era fértil ou como poderíamos melhorá-lo de forma a torná-lo mais produtivo. Também aprendi, desde aquela época, que a cana-de-açúcar era uma cultura “conservacionista” porque, como permanecia no solo por, ao menos, 5 anos, não havia o revolvimento para o preparo e, por essa razão, as perdas por erosão eram baixas.
 
Hoje, refletindo sobre essas duas considerações, percebo a simplicidade com que essas conjecturas foram tratadas e como, atualmente, o conhecimento se ampliou. Novos conceitos trouxeram um maior entendimento da responsabilidade econômica, social, ambiental e cultural da agricultura, de maneira que, hoje, a agricultura não é apenas uma atividade econômica, sendo muito maior a sua responsabilidade. 
 
O solo não é apenas o meio para o crescimento das plantas, a cana entre elas. O solo é um patrimônio, com papéis ecológicos definidos e vitais para a vida na Terra. A Figura 1 resume, em 5 itens, os papéis ecológicos do solo. Todas as funções têm sua importância e se inter-relacionam. 
 
Por muitos anos, acreditamos que um solo fértil era aquele que tinha bons indicadores mostrados na análise do solo, como pH neutro, alta capacidade de troca de cátions - CTC, ausência de alumínio e manganês ou metais tóxicos, altos teores de macronutrientes e presença adequada de micronutrientes. Alguns requisitos físicos do solo também se agregavam minimamente à noção de solo fértil, como teor de argila, bom armazenamento de água, boa drenagem, solo profundo, ausência de impedimentos ao crescimento das raízes. 

Mas a “vida biológica” do solo, representada pela presença da matéria orgânica, pela biomassa microbiana e macrofauna, e todas as inter-relações que ocorrem nesse micro-universo, eram pouco conhecidas e negligenciadas na agricultura do passado e, em muitas situações, ainda no presente. Com a cana não foi diferente.


  
O solo é uma das principais reservas da biodiversidade. É moradia de bilhões de microrganismos e de centenas de espécies de organismos. As estimativas mostram que existe mais biodiversidade abaixo da superfície do solo do que acima dela. Um solo fértil é aquele que apresenta, então, não apenas uma boa análise físico-química, mas é aquele que será sustentável por muitos séculos, mesmo sob intensa agricultura. 
 
O conceito de fertilidade do solo atual envolve a idéia de solo saudável, que é aquele “capaz de funcionar como um sistema vivo, dentro dos limites do ecossistema e da forma de uso do solo, para sustentar a produtividade biológica, promover a qualidade do ar e da água e manter a saúde vegetal, animal e humana” (Doran  & Safley, 1997).

Recentemente, os colegas Anghinoni e Vezzani (2021) apresentaram o conceito de fertilidade sistêmica, onde se enfatiza a compreensão do solo como uma entidade ou como um sistema vivo, resultante das relações entre seus componentes (partículas minerais, compostos orgânicos), que são enriquecidas e fortalecidas pelo fluxo de energia e matéria, desencadeado pelas plantas, e como o sistema de produção torna-se mais complexo se aumentarmos o número de espécies cultivadas, ou diminuirmos o preparo do solo, ou  incluirmos animais ao sistema (integração lavoura pecuária, por exemplo);  o número de relacionamentos e as funções resultantes no solo são intensificadas. O entendimento passa a ser baseado em uma abordagem sistêmica, e a percepção do solo, como um sistema vivo.

Sendo assim, apenas a análise do solo para fins de fertilidade não representa o que está ocorrendo no solo, apenas colabora em parte para o entendimento. Assim, a qualidade do solo, que pressupõe a fertilidade sistêmica, precisa ser avaliada com novos indicadores. 
 
A Figura 2, abaixo, apresenta indicadores químicos, físicos e biológicos que contribuem para avaliar a qualidade do solo. A ciência do solo tem muito a avançar ainda, para encontrar métodos de análise que simplifiquem e permitam que esses indicadores possam fazer parte das análises de rotina.


A segunda premissa, aquela que dizia que a cana é uma cultura “conservacionista”, eu ainda acredito, avalio que tivemos grandes avanços, mas vejo que temos um caminho a ser percorrido na busca de um sistema de cultivo que amplie o respeito à natureza, que busque técnicas de manejo e conservação do solo que se aliam à mecanização e se entrelaçam com os conceitos de fertilidade sistêmica, solo saudável e qualidade do solo. 

O cultivo da cana-de-açúcar pressupõe a monocultura. O rendimento das operações em larga escala requer grandes áreas homogêneas com o cultivo da mesma planta, por muitos anos, no mesmo solo. Embora o cultivo de diferentes variedades numa mesma região apresente certa variabilidade genética, ela é ínfima perto do que seria necessário para um sistema estável. A biodiversidade é uma importante ferramenta para o manejo de pragas, doenças e plantas daninhas.

É fácil perceber que, quanto maior o número de espécies presentes em um determinado cultivo, maior será o número de interações tróficas entre seus componentes e, em consequência, é muito mais provável estabilizar comunidades de insetos ou obter tolerância a microrganismos patogênicos. Aumentar a biodiversidade no cultivo de cana é uma estratégia com ganhos ecológicos e ambientais que se reverterá em ganhos econômicos. 

Atualmente, nas áreas de reforma, existe uma grande oportunidade para o aumento da biodiversidade, introduzindo espécies de adubos verdes, como diversos tipos de crotalárias, nabo forrageiro, milheto, guandu, braquiária, soja, amendoim e, recentemente, milho. Que seja bem-vindo o milho ao nosso sistema de cultivo da cana.

E, se viabilizarmos as culturas alimentícias cultivadas de maneira a intercalar com a cana, será um grande avanço a ser somado aos enormes êxitos da cana-de-açúcar para a sociedade brasileira. Ressalva apenas que o milho, por ser “parente” biológico da cana, também multiplica alguns indivíduos indesejáveis à cana, como espécies de nematoides. Então, mais uma vez, muito importante a biodiversidade. Precisamos alternar a presença das espécies de coberturas verdes e cultivos como milho, soja e outros. A propósito, o IAC estuda o feijão como cultura intercalar a ser cultivada com a cana. Teremos novidades nos próximos anos. 

Ter esperança é uma atitude pacífica de quem espera. Em agricultura, é deixar que alguém faça por nós o que deveríamos nos comprometer e por diversas razões não fazemos. E o tempo passa implacavelmente e cobra seu preço. Não quero ter esperanças de que o cultivo de cana seja mais sustentável e conservacionista. Quero ter certeza. Esta convicção já tenho: dá para fazer agora e dá para fazer melhor.