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Fernando Cullen Sampaio

Diretor da FCS Engenharia e Consultoria

Op-AA-37

O processo da obtenção do caldo

Na fabricação de açúcar, diferentemente dos processos industriais convencionais, o produto - açúcar - já vem pronto na matéria-prima. As plantas verdes, no nosso caso, a cana-de-açúcar, através do fenômeno da fotossíntese, consegue transformar energia luminosa em energia química potencial; é um processo fantástico, em que a cana busca o gás carbônico na atmosfera, a água no solo e a energia luminosa do sol produzindo matéria orgânica, para a planta crescer, moléculas complexas de reserva de energia, os açúcares e devolvendo para a atmosfera oxigênio.

O processo de fabricação de açúcar consiste, basicamente, na separação dos componentes da cana, através de sucessivas operações, fazendo sobrar, ao final, num processo de purificação, o açúcar desejado. Na moenda, a fibra é separada e o caldo misto produzido. A água é retirada desse caldo por evaporação, na etapa de evaporação propriamente dita, e, posteriormente, na etapa de cozimento. A cana não é constituída apenas de açúcares, fibra e água. O caldo da cana é uma suspensão coloidal onde partículas apresentam diferentes faixas de tamanhos e composição química bastante heterogênea, tendo desde íons até partículas grosseiras, composta pela sacarose, glicose e frutose, nossos produtos - o açúcar e o álcool -, e ainda mais: ácidos orgânicos, sais minerais, proteínas, ceras, graxas, gomas, corantes, aminoácidos, fenólicos, amido, dextrana, outros polissacarídeos de alto peso molecular...

Essa composição é muito variável em função da variedade e da maturação da cana, do tipo de colheita, do solo, da adubação, das condições climáticas, das impurezas minerais e vegetais que acompanham a cana, bem como o próprio tempo entre as operações de corte e de moagem da cana. Cabe às etapas do tratamento do caldo a tarefa da eliminação das impurezas presentes, onde os processos físico-químicos promovem a precipitação das impurezas, formando, inicialmente, coágulos e, na sequência, flocos grandes e pesados que irão precipitar-se no interior dos decantadores, arrastando, no caminho, o material inerte em suspensão, formando o chamado lodo. Na filtração do caldo, serão retidas as impurezas contidas no lodo e produzido o caldo clarificado.

Boa parte dos coloides presentes no caldo de cana carregam cargas elétricas, devido à adsorção de íons sobre a sua superfície. Essas cargas promovem algumas forças, sendo a força de repulsão eletrocinética, - devido à diferença de potencial entre as partículas e a solução (Potencial Zeta - PZ) - uma das mais significativas. Essa repulsão entre partículas assegura que a coagulação espontânea não ocorra, portanto a dispersão se mantém estável.

No caldo de cana, essas cargas elétricas são negativas. Em trabalhos realizados, verificou-se um PZ entre -7 a -15mV para caldo de cana fresca, podendo chegar a PZ maiores que -80mV para caldo proveniente de cana velha. Portanto, canas velhas produzem caldos mais estáveis, mais difícil de coagular e mais difícil de se tratar. Podemos definir três estágios básicos da clarificação:

1. Redução do Potencial Zeta das partículas dispersas para valores próximos de zero, para garantir máxima coagulação;
2. Permitir que as partículas coloidais neutras formem aglomerados - floculação primária;
3. Agrupar os aglomerados para formar grandes flocos  - floculação secundária - que vão sedimentar rapidamente, arrastando as impurezas.

Para o primeiro estágio, podemos conduzir o processo utilizando quatro técnicas:

a. Pré-aquecimento do caldo à temperatura acima de 65oC: nessas condições, ocorre efeito da denaturação de proteínas, em que elas perdem as características estruturais e iniciam um processo de coagulação. As cargas negativas se concentram exatamente nas proteínas.
b. Redução do potencial de repulsão alterando o pH da solução: o ponto isoelétrico (neutralização das cargas) para o caldo de cana está situado na faixa de pH entre 2.5 a 4.0, justificando o mecanismo do tratamento de pré-clarificação ácida envolvendo a adição do gás SO2. Na prática, trabalhamos com pHs no sulfitado por volta de 3,8 a 4,4, dependendo das características da qualidade da cana e do tipo de açúcar a produzir. Além do efeito da sulfitação descrito, realçamos ainda a importância da aplicação do SO2 como agente antioxidante, inibidor das reações de Maillard - o SO2 age formando complexos com açúcares redutores, que, juntamente com aminoácidos, são precursores da formação das melanoidinas, inibindo perdas de açúcar e formação de cor, redutor de viscosidade dos caldos, xarope, massas e méis. A sulfitação é sempre recomendada na produção de açúcar branco ou em condições de cana com a qualidade comprometida.
c. A carga elétrica pode também ser reduzida a zero pela adição de certa quantidade de cátion metálico (Al+3, Ca+2 ou Mg+2); agindo sobre as partículas negativas presentes, associa-se ainda esse fenômeno à precipitação de fosfatos de cálcio, processo de calagem - correção do pH com aplicação de leite de cal ou sacarato de cálcio -, normalmente empregado pelas usinas no Brasil. Fica claro que a quantidade de precipitado depende da concentração de fosfato inorgânico presente no caldo, daí a quarta técnica:
d. Complementação de P2O5 no caldo misto, garantindo teores entre 200 e 350ppm, dependendo também da qualidade do açúcar a ser produzido, aplicando ácido fosfórico ou produtos formulados para essa finalidade.

O segundo estágio é contemplado na aplicação do cátion metálico descrito no item c anterior; nas nossas usinas, mais usualmente, utiliza-se o Ca (cal calcítica) ou Ca e Mg (cal dolomítica), onde esses cátions bivalentes formam a ponte de ligação entre duas partículas carregadas negativamente, formando os primeiros flocos. Nessa fase, é possível também a utilização de auxiliares de floculação, o policloreto de alumínio, por exemplo.

Importante ressaltar que é nessa fase que é realizada a correção do pH do caldo - pH neutro, reação dos ácidos orgânicos com hidróxido de cálcio ou magnésio, garantindo a neutralização do caldo e a aplicação de cátion metálico necessária para uma boa floculação - pH próximo de 7 -, inibindo reações químicas de inversão da sacarose e/ou degradações de açúcares redutores no decorrer do processo, onde os açúcares vão estar expostos a condições de elevadas temperaturas, elevados tempos de residência e elevadas concentrações. Na sequência, o caldo é aquecido acima do ponto de ebulição à pressão atmosférica, possibilitando a desaeração - eliminação do ar dissolvido no caldo ou ocluso no bagacilho - na operação do flasheamento.


O terceiro estágio é, então, realizado com a aplicação de polímero aniônico de qualidade - peso molecular e grau de hidrólise -; cátions metálicos irão formar a ponte de ligação do polímero com os flocos primários, dessa forma, após o completo tratamento químico, visando atender aos três estágios básicos da clarificação, obtém-se um caldo floculado em que se verifica uma visível separação de fases, com flocos grandes e pesados, possibilitando a separação na decantação. 


A filtração do lodo tem um papel fundamental na clarificação. É nessa operação onde é recuperado o açúcar presente no caldo que acompanha o lodo e também onde de fato são eliminadas as impurezas precipitadas e separadas na decantação, operação com adequada retenção de sólidos que evita sobrecarga na clarificação, em função da recirculação de sólidos junto ao caldo filtrado. Para garantia de boa performance da filtração, a etapa anterior de condicionamento do lodo é muito importante, significa melhorar as características de filtrabilidade do lodo: concentração, pH, temperatura, relação fibra/sólidos totais através da complementação de bagacilho e polímero, obrigatório na utilização de filtros prensa.

Portanto um bom tratamento do caldo é aquele em que se conhecem preliminarmente a-s características da cana - monitoramento no PCTS, a qualidade do açúcar a produzir, monitorando e ajustando as variáveis de controle em todas as etapas descritas: correção do P2O5 > pré-aquecimento > sulfitação > calagem > aquecimento > flasheamento > polímero > decantação > peneiramento/filtração do caldo clarificado > filtração do lodo, obtendo um caldo clarificado adequado à necessidade da produção de açúcar, com qualidade, padrão, baixas perdas e com baixo custo.