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Evaristo Eduardo de Miranda

Chefe-geral da Embrapa Territorial

Op-AA-64

O que acontecerá se nada acontecer?
O futuro deixou de ser o antigo quarto escuro onde as crianças tinham medo de ir brincar. A pandemia se expande, gera novos desdobramentos, e crescem as especulações sobre o futuro do agronegócio, do País e do planeta. Estudos sobre os impactos da Covid-19 sobre o agronegócio, as cadeias produtivas, a sociedade e o futuro do planeta são mais abundantes do que máscaras e luvas de proteção. Haja pdfs e lives.

Alguns economistas imaginam uma economia desmundializada; outros veem o fim da globalização; otimistas enxergam a oportunidade de se inventar um novo mundo ou de derrubar governos constituídos; apocalípticos de organismos internacionais preveem uma crise como a de 1929; ecologistas falam da necessidade de se criar um mundo verde, com a redução das emissões e poluentes; outros temem a emergência de Estados liberticidas, como os pequenos tiranos de prefeituras e governos, impondo seus projetos políticos aos cidadãos em nome da “ciência”; outros saúdam o fim do imperialismo norte-americano, o triunfo mundial da China e recomendam como medida prática estudar o mandarim. Em home office.
 
A capacidade humana de se projetar no futuro é, a um tempo, força e ilusão. Em tempos de crise coletiva, escuridão e falta de rumo, a imaginação humana, dopada pela angústia, é de uma fertilidade muito grande. Nem o agrônomo mais otimista sonhou tal fertilidade para os solos. Ela constrói cenários de mudanças radicais. E se, passada a pandemia, nada se passar?
 
Durante a Segunda Grande Guerra, sobretudo na Europa e na América do Norte, o trabalho de mulheres em fábricas e escritórios para substituir os homens surgiu como uma solução provisória. Ao final dos combates, muitas mulheres não retornaram à vida doméstica. O movimento feminino por mudanças no mundo do trabalho, da política e da sociedade dura até hoje.

A guerra acelerou o desenvolvimento tecnológico, dos antibióticos ao radar, da televisão à energia nuclear, e levou à implantação dos sistemas de seguridade e previdência social (aposentadoria) pelo Estado de Bem-estar Social. A fase pós-pandemia trará mudanças. Talvez elas não acontecessem, ou pelo menos não na velocidade e no alcance ocorridos, sem essa catástrofe sanitária quase planetária.

O modo de vida social e relacional no ambiente profissional, econômico, de governança e até da política já vive o impacto de novas práticas, como o teletrabalho (home office), a telemedicina (sem receitas!), a e-governança, as votações eletrônicas, o uso de realidades virtuais, a comunicação por vídeo (Face Time, Skype, Zoom), os pagamentos eletrônicos, as compras à distância (delivery) e a onipresença da internet.

Ampliou-se a mudança do mundo analógico ao digital, do presencial ao remoto. O relacionamento afetivo é ainda mais difícil na solidão da vida remota. A sistematização de hábitos de higiene e comportamentos de prudência preventiva ficarão cristalizados em parte da população, sobretudo numa fração das classes média e alta (na qual já deveria estar) e nos que viveram os traumatismos da pandemia.

Daí a transformar o planeta... Gente sem noção compara essa pandemia com a peste negra, a mais devastadora na história humana. Ela também teve origem na China. Pela Rota da Seda, chegou à Crimeia em 1343 e se espalhou. Matou entre 30% e 60% da população da Europa e reduziu a população mundial de 475 para 350-375 milhões. Retornou em vários surtos por séculos. 

Não dá para comparar. Nem com a gripe espanhola, que, ao que tudo indica, era francesa: essa influenza, esse H1N1, matou 50 milhões no início do século XX. Estamos todos no mesmo barco? Não. Quarentena mesmo só para quem tem recursos financeiros e renda garantida. Hospitais públicos não são iguais aos privados. Estados gastarão mais, serão mais assistencialistas. 
 
O mundo sairá mais pobre e desigual do que entrou nessa crise. E seguirá essencialmente como é. Os fatos e a realidade teimosamente já mostram o mundo mais egoísta, cínico, desigual e menos solidário. Há melhor ilustração disso do que a recusa em cortar seus próprios privilégios por parte dos poderes legislativo e judiciário?

Ou do que Estados disputando máscaras e respiradores como consumidores por papel higiênico em supermercados? Felizmente, existem voluntários ajudando, pessoal de saúde se sacrificando para curar e aliviar o sofrimento, e muita gente pensando num mundo melhor. Infelizmente, as projeções otimistas e infantis de mudanças utópicas não ocorrerão. 

O partido comunista chinês, a situação do Tibete, as favelas mexicanas, o incipiente seguro rural brasileiro, a dependência do etanol em relação a políticas públicas, a exploração sexual de menores ou a miséria africana seguirão indeléveis como tatuagens na pele arrepiada do planeta.

As mudanças decorrentes das Grandes Guerras e até da Guerra Fria foram geradas por impulsos expansionistas de mercado, comércio e poder. Elas aceleraram o planeta.  O mundo atual não está em guerra contra esse coronavírus, mesmo se tantos abusam dessa figura de linguagem. O movimento  pode ser classificado – no máximo – como o de resistência a um invasor.

É muito diferente. As eventuais mudanças decorrentes da pandemia da Covid-19 resultarão da imposição de limites, da contração de espaços sociais e da determinação, pelas autoridades, de fronteiras a não serem ultrapassadas, em geral, as do domicílio (para quem o tem). A maioria das pessoas seguirá como é. Para alguns, o limite será fonte de crescimento.
 
Só cresce quem aceita limites. Não se colocam obstáculos aos cavalos nas competições para que caiam. Ao ultrapassá-los, o cavalo vai além. Essa é uma das leis fundamentais do humano: no húmus das dificuldades, derrotas e fracassos, ocorre a verticalização das árvores humanas. Quem sabe crescer, elevar-se diante do solo dos limites faz deles um adubo.

Quem se deixa hipnotizar e paralisar pelas derrotas e limites faz neles um túmulo. Esse princípio preside a maioria das artes marciais do Oriente: o adversário não é visto como um inimigo. Ele é aquele que se opõe a um homem para que neste, face a essa resistência, surja uma nova dimensão. Cada humano possui um potencial imenso de desenvolvimento. 

Cada um é sempre o portador de uma outra realidade, uma outra possibilidade, invisível, infinita, cósmica. Essa outra realidade constitui-se de forças contrárias: uma exige e a outra impede, retarda e atrasa. Isso vale para famílias (tão revalorizadas nesta pandemia!), comunidades, empresas e instituições.

Vivemos o que somos. Não por punição, e sim para nomear o que se passa de forma inconsciente e, até então, nos escapava totalmente.  Para ampliar nossas dimensões e caminhar. Temos a possibilidade de buscar as fontes de nossas provações e limites no interior de nós mesmos, ao invés de encontrar um bode expiatório no exterior.
 
As provas devem ser transformadas em joias, únicas e de infinito valor. Não é fácil. A ajuda externa é quase inútil. Ninguém pode se colocar no lugar do outro e nem na plenitude dos desafios e sofrimentos vividos por comunidades e empresas ao longo desta crise.
Os limites ensinam a existência de passagens, de páscoas irredutíveis e intransferíveis na vida, chamados diferenciadores, únicos, como o próprio ser.

Eles chegam como oportunidade de um novo caminho, próprio e apropriado. Muitos seguirão idênticos ou até pior do que antes da pandemia. Não será de forma virulenta, mas algumas pessoas, empresas e instituições saberão ultrapassar os limites impostos pela crise. E o farão já, durante a crise. Os vírus não. Microrganismos não são conservadores, nem revolucionários. Só as pessoas.

Aquila non capit muscas.