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Marcos Cesar Gonçalves

Pesquisador Científico do Instituto Biológico Centro P&D e Sanidade Vegetal

Op-AA-52

Uma perspectiva para o cenário fitossanitário
A cana-de-açúcar apresenta mais de 200 doenças, causadas por fungos, bactérias, vírus, fitoplasmas e nematoides, relatadas em diferentes países. Dentre essas doenças, as causadas por vírus podem atingir elevado impacto econômico, pois afetam diretamente a eficiência fotossintética da planta, refletindo no crescimento mais lento e em diminuição no conteúdo de sacarose, com consequentes reduções na produtividade da cultura. No entanto, conforme será discutido, a incidência e a epidemiologia dessas doenças estão sofrendo alterações, advindas dos novos cenários apresentados pelo setor sucroalcooleiro nos últimos anos. 
 
No quadro atual, os dois principais vírus limitantes à produção canavieira são o mosaico e o amarelinho da cana-de-açúcar, causados pelo Sugarcane mosaic virus e pelo Sugarcane yellow leaf virus, respectivamente. Nas principais regiões produtoras, especialmente das Américas, essas doenças apareceram em épocas bastante distintas do cultivo da cana; o mosaico foi evidenciado no início do século XIX, e o amarelinho, em meados da década de 1990.

Apesar da diferença espaçotemporal da emergência dessas viroses na cultura da cana-de-açúcar, ambas atingiram proporções epidêmicas de grandes prejuízos aos produtores, com perdas de produção na ordem de 40% a 50% nas principais variedades plantadas na época. Isso ocasionou a rápida substituição de variedades, além de mudanças no cultivo, exigindo altos investimentos para viabilizar e agilizar o diagnóstico, a produção de matrizes sadias e a disponibilização de variedades resistentes. Recentemente, algumas alterações surgiram no agroecossistema da cana-de-açúcar, que tem modificado o delicado equilíbrio entre os diversos patógenos e insetos pragas da cultura, os quais, por vezes, constituem vetores de doenças. 
 
A primeira delas foi a substituição da queima pela colheita mecanizada, permitindo a maior sobrevivência de insetos vetores e de fontes de inóculo de doenças entre um ciclo e outro da cultura. Certamente, isso contribuiu para o aumento, ou mesmo ressurgimento, de antigos problemas fitossanitários causados por fungos, vírus e bactérias, a exemplo das ferrugens da cana, podridões do colmo e alta incidência de mosaico, além do aumento de cigarrinhas e outros insetos.

Um segundo fator é o tão alarmado aquecimento global, causado pelo aumento na emissão dos gases de efeito estufa. Diversos estudos têm mostrado que a alteração de apenas 1 grau Celsius na média da temperatura anual pode causar várias alterações no desenvolvimento das culturas e na população de insetos vetores, como os pulgões da cana, vetores tanto do mosaico quanto do amarelinho.

As mudanças no ciclo de vida dos insetos, alterando a sua época de incidência ou o tamanho das populações, pode ocasionar mudanças importantes na epidemiologia das doenças virais e de outras doenças. Ao mesmo tempo, o aumento da temperatura global irá influenciar na taxa de crescimento da cultura da cana-de-açúcar, altamente responsiva às variações de temperatura e de radiação solar. 
 
Visando a um salto na produtividade da cultura, uma mudança de paradigma está ocorrendo no novo sistema sucroenergético do País, com a iminente substituição, ao menos parcial, do etanol de primeira geração, baseado no elevado teor de sacarose das variedades de cana atualmente cultivadas, pelo etanol de segunda geração, produzido a partir de biomassa lignocelulósica, mais especificamente celulose e hemicelulose.

Apesar da possibilidade do uso de outras fontes de biomassa para a produção de etanol de segunda geração, como diversas outras poáceas, a exemplo do sorgo, miscanthus e eryanthus ou mesmo de espécies florestais, a cana-de-açúcar tende a continuar como a principal cultura a ser explorada, devido ao elevado know-how, infraestrutura e logística, construídos nas últimas décadas, para a produção de etanol de 1ª geração.

Atualmente, o etanol de 2ª geração já é produzido a partir de subprodutos do processamento da cana-de-açúcar, como a palha e o bagaço, os quais também são utilizados na cogeração de energia elétrica. No entanto o incremento na produção de etanol de 2ª geração exigirá a substituição parcial, no momento gradual e reduzida a áreas experimentais, das variedades atualmente cultivadas, com elevado teor de sacarose, pela denominada cana energia, com alto teor de fibras em detrimento à sacarose. 
 
O melhoramento da cana energia é baseado na seleção de clones com maior biomassa e conteúdo de fibras em sua composição, provenientes, principalmente, de cruzamentos entre cultivares de cana-de-açúcar com bom desempenho, já adaptadas aos diferentes ambientes de cultivo, e genótipos de Saccharum spontaneum, uma espécie mais rústica, com características desejáveis para a biomassa lignocelulósica.  

Além da maior produtividade e alto teor de fibras, o cruzamento com S. spontaneum tende a conferir à canaenergia maior resistência a estresses bióticos e abióticos. Sob essa perspectiva, a resistência à seca e a doenças em geral, teoricamente, seriam menos limitantes para a produção. Isso se deve à maior rusticidade desses genótipos, principalmente devido ao sistema radicular mais desenvolvido, o que também confere melhor adaptabilidade a solos mais pobres. 
 
Por esse motivo, áreas previamente ocupadas com culturas de menor valor, ou com restrição hídrica para o plantio de variedades atuais ou ainda áreas degradadas, poderiam ser exploradas para a produção de cana energia, ao mesmo tempo em que regiões com solos mais férteis e mais ricas em recursos hídricos poderiam ser ocupadas com a produção de alimentos, uma das constantes críticas de alguns setores da sociedade sobre a grande ocupação de áreas agrícolas nobres com o plantio de cana-de-açúcar.

Apesar da boa perspectiva do comportamento desses novos cruzamentos frente à ocorrência das principais doenças da cultura, poucos, ou mesmo nenhum estudo, foram feitos nesse sentido. Certamente, problemas com doenças aparecerão, pois haverá alterações nas relações dos patógenos com o novo ambiente, clima e carga genética desses novos materiais.

De acordo com o exposto, esse novo cenário compreendendo as alterações já implementadas na colheita da cana, aliadas às mudanças climáticas e às novas características de comportamento das variedades de cana energia, pode impactar o cenário da canavicultura nos próximos anos, incluindo alterações na incidência e nos danos causados por doenças.

No entanto, devido ao período de avaliação fenotípica dos novos genótipos e à adaptação das usinas ao processamento desse material, as projeções para que o cultivo da cana energia seja definitivamente realizado em larga escala são somente para 2025, quando, certamente, veremos, na prática, os efeitos desse último fator sobre os aspectos fitossanitários da cultura.