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Marcelo Menossi Teixeira

Coordenador do Laboratório de Genoma Funcional do Departamento de Genética e Evolução da Unicamp

Op-AA-17

Propriedade intelectual na biotecnologia da cana-de-açúcar

Os altos níveis de produtividade da cana-de-açúcar têm seus fundamentos na ampla troca de variedades de cana entre os cientistas que há séculos realizam os programas de melhoramento genético clássicos, majoritariamente no setor público. Esse sistema aberto de troca de materiais foi substancialmente alterado, com a possibilidade da proteção das novas variedades de planta, quer pelo sistemas de patentes em vigor em diversos países, como os EUA, ou pela proteção sui generis, em vigor no Brasil.

A produção de plantas geneticamente modificadas fez com que a importância da propriedade intelectual assumisse um novo patamar. Isso se deve ao fato de que essas tecnologias são desenvolvidas graças a um grande número de elementos passíveis de proteção, tais como seqüências de DNA que regulam a transcrição, que codificam proteínas de interesse agronômico, vetores para transformação das células, bem como métodos que permitem a transferência dos novos genes para o genoma da célula receptora.

Com o número de tecnologias protegidas crescendo numa velocidade exponencial, inovar é uma atividade cada vez mais complexa em todas as áreas, sendo que na biotecnologia isso é particularmente sensível. Mais e mais as inovações dependem de um conjunto maior de tecnologias pré-existentes. Para se ter uma idéia, recentemente foi produzida uma planta de arroz, que acumula pró-vitamina A nos grãos, graças à ação de três genes distintos.

Para se chegar a essa planta, foram usadas 72 tecnologias patenteadas, pertencentes a 40 entidades distintas. Os autores desta invenção puderam patenteá-la, pois ninguém havia unido as peças de DNA, da forma que eles vislumbraram. No entanto, para comercializar esse arroz, foi necessário um gigantesco esforço junto às entidades detentoras das 72 patentes, já que os autores não haviam obtido uma autorização prévia para o uso comercial.

Esse é o chamado cipoal de patentes (patent thicket), que tem atraído a atenção de setores do governo e da indústria ao redor do mundo, uma vez que pode ser um entrave à inovação. Esse caso emblemático do arroz dourado, infelizmente, é um panorama bem atual da forma como os laboratórios públicos de pesquisa e empresas privadas no Brasil vêm desenvolvendo suas pesquisas, que visam aplicação comercial.

É muito comum, entre os pesquisadores, o uso de seqüências de DNA que são obtidas de colegas no exterior, perante as assinaturas dos chamados “termos de transferência de material”, que invariavelmente dão autorização apenas para pesquisa. Usualmente, o pesquisador só se preocupará com a obtenção de uma licença para uso comercial em uma eventualidade em que o experimento é bem-sucedido. Sem dúvida, essa é a pior hora para se negociar o preço de uma tecnologia, pois uma falta de acordo implicaria na impossibilidade de comercia-lização.

Neste cenário, no setor sucroalcooleiro, duas ações estratégicas são urgentes, para que se tenha a liberdade para operar (freedom to operate), sem infringir patentes de terceiros. Por um lado, deve-se considerar que, aproximadamente, metade das variedades comerciais de cana são produzidas no âmbito da Ridesa, rede formada por universidades públicas, e que a maior parte das pesquisas com biotecnologia são feitas em universidades, com o qual há um enorme peso do setor acadêmico na biotecnologia de cana.

Assim, é fundamental que seja reforçada a disseminação da cultura de propriedade intelectual no ambiente acadêmico, que forma os futuros integrantes das empresas públicas e privadas. Em um horizonte de curtíssimo prazo, o desconhecimento ou a protelação de medidas nesse sentido tem um enorme potencial daninho para qualquer tipo de entidade envolvida na produção de plantas de cana geneticamente modificadas.

O maior conhecimento a este respeito deve repercutir também na tomada de decisão sobre qual tipo de estratégia experimental deve ser adotada, de forma a se evitar a infração de patentes. Existem diversas tecnologias que não estão patenteadas no Brasil e cuja proteção nos grandes mercados consumidores (EUA, Europa e Japão) não é suficiente para criar barreiras de importação.

Da mesma forma, algumas tecnologias já têm mais de 20 anos, com o qual são de domínio público em todo o mundo, enquanto outras estarão em domínio público, quando a planta estiver pronta para comercialização. Uma segunda estratégia, talvez até mais complexa, envolve o desenvolvimento de tecnologias, que servirão de plataforma para o desenvolvimento da biotecnologia de cana. Isso implica na identificação de todo um conjunto de seqüências de DNA citados anteriormente, bem como métodos de produção e seleção das plantas transgênicas.

Sem essa plataforma, corre-se o risco de sermos eternos reféns de tecnologias importadas. Um horizonte possível para se desenvolver essas plataformas será, por volta, de 10 a 15 anos. É importante destacar que existem alternativas, a curto prazo, para se contornar o problema do uso de tecnologias protegidas. Uma possibilidade seria a articulação de um pool entre as entidades interessadas na aplicação da biotecnologia da cana.

Esse pool negociaria, junto às empresas detentoras das diversas patentes, a permissão de uso das tecnologias essenciais para o processo de produção de plantas transgênicas. Esta negociação em bloco tem o potencial de obter custos bem reduzidos, uma vez que seria feita já na etapa inicial do projeto de desenvolvimento. Concluindo, a complexidade do tema da propriedade intelectal é proporcional à sua relevância para o setor de biotecnologia. Os desafios são grandes e somente um planejamento adequado – e urgente – permitirá a manutenção da nossa competitividade, em um horizonte a médio prazo.