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Gonçalo Amarante Guimarães Pereira

Professor do Instituto de Biologia e Coordenador do Laboratório de Genômica e Bioenergia da UNICAMP

OpAA81

Refossilização: a chave para a transição energética
Embora eu seja suspeito para avaliar, meu pai era um comerciante brilhante e um grande observador. Ele sempre repetia algumas frases, que sintetizavam a sua percepção do que seria importante neste mundo. Uma das suas favoritas era: “não interessa o quanto você ganha; o importante é quanto você guarda”. Isso marcou a minha vida, mas à época eu não imaginava que essa formulação poderia ser a estratégia fundamental para o maior problema da humanidade: a Transição Energética. 
 
Tudo, absolutamente tudo, é energia. E a energia assume várias formas e se transforma. Na jornada do nosso planeta, começamos, há cerca de 4,5 bilhões de anos, com o que poderíamos denominar de inferno, que a ciência polidamente batizou como Era Hadeana, um ambiente impossível para a vida. Entretanto, a vida, embora aparentemente frágil, é extremamente resiliente e ela já começa em condições inacreditáveis, quando o planeta ainda estava sendo intensamente bombardeado por toda espécie de cometa e meteoro. Mas a vida é, literalmente, transformadora.

E ela transformou o planeta, principalmente a partir da fotossíntese, quando reduziu a concentração de CO2 da atmosfera e aumentou a de oxigênio. Talvez não seja claro para todos, mas a nossa atmosfera é, antes de tudo, resultado de fenômenos biológicos. A sua composição não está, de forma alguma, escrita em pedra. Ela é altamente frágil e volátil. 

E a vida foi avançando nesses últimos 4 bilhões de anos. Aos trancos e barrancos, com grandes eventos de extinção em massa – com, pelo menos, 5 registrados –, até que o ambiente, por alguma razão ainda pouco compreendida, se estabilizou há cerca de 12 mil anos. Entramos então no chamado Holoceno, uma Era de relativa tranquilidade climática, com eventos extremos espaçados e razoavelmente suportáveis. 

Há cerca de 300 mil anos, no meio de uma Era denominada Pleistoceno, surge o homem. Aparece um macaco pelado, sem garras, sem dentes, com musculatura geral frágil, mas com capacidade de cobrir grandes distâncias e de se comunicar. Entretanto, o mais importante de tudo é que um sentimento, já existente em diversas espécies, na nossa se intensificou: a empatia. Somos capazes de sentir a dor do outro, o que nos permitiu cooperar em larga escala e desenvolver estruturas sociais para tratar do bem comum. 

Sem dúvida, não somos perfeitos e não vivemos apenas com a cooperação. A competição é parte do nosso DNA e fundamental para otimizarmos as nossas organizações, mas ela deve ser apenas uma sintonia fina. A razão do nosso sucesso não é, nem nunca foi, a competição e podemos ver isso claramente nos nossos primos, quase irmãos, chimpanzés, com quem compartilhamos quase 99% do nosso DNA. Esses primos, duas vezes mais fortes do que nós, não conseguem formar grupos maiores do que 50, no máximo 100 indivíduos. Encontrar alguém de um outro bando significa luta e morte na certa. Assim, temos nesses nossos parentes uma receita de fracasso e um precioso exemplo a ser observado para não ser seguido. 
 
Não conquistamos o mundo à força, apesar das nossas muitas guerras e conflitos. Nós nos tornamos Senhores do Planeta a partir da nossa capacidade de sentir a dor do outro e de cooperar, mesmo quando isso não está claro. Apesar da nossa genética benigna para a evolução social, só conseguimos desenvolver a civilização nos últimos 10 mil anos, o que “coincide” – e eu não acredito em coincidências – com a estabilização climática do Holoceno. Portanto, Civilização (C) é igual a Genética (G) mais Estabilidade Climática (EC). Simplificando, C = G + EC. Mexeu nos fatores, mexe nos resultados da civilização.
 
Portanto, uma das grandes missões da ciência é entender os fatores que podem desestabilizar o clima, e ela cumpriu brilhantemente essa missão. Está absolutamente claro que a redução dos gases de efeito estufa é um dos fatores fundamentais para a estabilidade da atmosfera. No seu processo natural, a fotossíntese converteu grande parte do CO2 atmosférico em biomassa, e uma boa parte dessa foi sequestrada “para sempre” sob a forma de carvão e petróleo. 

Entretanto, como Vinícius nos ensina, as coisas são “para sempre enquanto duram”, e a inteligência humana percebeu a quantidade de energia que estava simplesmente enterrada no planeta e que poderia ser empregada para bombar a civilização. Lembrem-se: tudo é energia e energia é conversível. Portanto, não temos nada a reclamar do carvão ou do petróleo. 

Hoje, nossos 8 bilhões de irmãs e irmãos, nossa grande família humana, nada mais é do que energia fóssil reciclada. Contudo, isso não veio sem efeito colateral, que foi levar de volta para a atmosfera uma grande quantidade de CO2. Mas o caminho que devemos trilhar não é o da revolta, e sim o da racionalização. Aprender com a natureza e usar a nossa inteligência para acelerar processos que possam trazer de volta a estabilidade climática, que foi rompida pela DESFOSSILIZAÇÃO. 

Na minha visão, a estratégia é clara e trata-se de uma grande oportunidade para os países da faixa tropical, que foram os grandes prejudicados das Revoluções Comercial e Industrial. Temos agora que promover a energia renovável, tanto sob a forma de eólica e solar, mas principalmente da biomassa. Com a biomassa, capturamos CO2 de forma simples e eficiente da atmosfera e temos espécies capazes de vegetar em qualquer ambiente, com alta performance nas regiões tropicais. 

Para exemplos recentes, estamos iniciando as revoluções da Cana Energia, Agave e Macaúba, que juntas, nas áreas de grande intensidade luminosa, conseguem substituir o petróleo e todos os seus produtos. Além disso, ao convertê-las em biocombustível produz-se grandes volumes de CO2 puro e concentrado, cuja captura direta da atmosfera – com a absurda tecnologia DAC: Direct Air Capture – gera custos ao redor de US$ 500 a tonelada. Portanto, CO2 concentrado é produto, e quando juntamos essas moléculas com o hidrogênio gerado a partir da eletrólise da água, com uso da energia renovável, temos o chamado E-fuel, um Biocombustível gerado por fotossíntese artificial, com moléculas idênticas àquelas geradas com o refino do petróleo.
 
Vejam que, com essa estratégia, conseguiremos alcançar o primeiro objetivo: DESFOSSILIZAR. Entretanto, isso já não é suficiente, uma vez que já colocamos muito CO2 na atmosfera. É aqui que entra um segundo elemento: o Biochar ou Biocarvão. Trata-se de um velho conhecido, produzido a partir da pirólise da biomassa. Esse material, que é um “Carvão Aerado”, é capaz de gerar sequestro de carbono e não apenas mitigação. Além de não degradar, ele é uma espécie de “Sunflair do Solo” para microrganismos, que adoram colonizá-lo e nele fazer moradia. 
 
Sabemos hoje que a interação entre os microrganismos e as plantas é fundamental, e com ciência e tecnologia temos o potencial de manejar o sistema para substituir boa parte dos fertilizantes, indutores de crescimento e defensivos agrícolas. Dessa forma, e diferentemente do petróleo, carvão ou do bombeamento de CO2 para o subsolo, trata-se de uma REFOSSILIZAÇÃO PRODUTIVA, que vai recuperar solos degradados, gerar novas fronteiras agrícolas (o sertão vai virar SAF), criar emprego, prosperidade e estabilizar o clima. 

Como meu pai já sabia, esse é o caminho. Tanto faz o que emitimos, o importante é saber o quanto seremos capazes de REFOSSILIZAR.