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Plinio Mário Nastari

Presidente da Datagro

OpAA75

A importância de uma visão estratégica
A indústria do açúcar é a mais antiga do Brasil e evoluiu muito com a crescente diversificação na direção do etanol, a partir da década de 1970, e posterior aproveitamento da bioeletricidade. Outros aproveitamentos da considerável energia contida na cana têm sido desenvolvidos com o etanol de segunda geração, a biodigestão de resíduos, a peletização do bagaço, o aproveitamento da levedura, a transformação do etanol em produtos químicos e plásticos e a captura de dióxido de carbono biogênico. 
 
É impressionante que o setor tenha atingido a sua dimensão e importância, visto que, até pouco tempo, não dispunha de uma regulação que indicasse uma meta de desenvolvimento de longo prazo. Toda a expansão ocorreu por conta de um espírito empreendedor que motivou o aproveitamento de pastagens que geravam pouca renda para a produção de cana e a instalação de usinas para o seu processamento. 
 
A dimensão atingida está relacionada à acumulação de capital obtida por essa diversificação e é resultado dela, o que a distingue de indústrias equivalentes de outros países. Foi por causa dessa expansão que o etanol atingiu uma participação de 48,4% no consumo de combustíveis do ciclo Otto em gasolina equivalente, em 2019 (participação que caiu para 41,9%, em 2022), e que a eletricidade de biomassa atingiu 4,4% de toda a geração elétrica em 2022, contribuindo para a invejável marca de 92,0% de geração elétrica renovável nesse ano.

A regulação que resolveu a deficiência de uma meta de longo prazo foi o RenovaBio, aprovado através da Lei 13.576, de 2017, regulamentado por vários decretos e resoluções da ANP e implementado, em termos práticos, a partir de abril de 2020. Através de metas de descarbonização aprovadas e renovadas sempre para os 10 anos a seguir, o RenovaBio passou a oferecer esse direcionamento.
 
Na prática, entretanto, desde a safra 2010/11, a oferta de açúcares totais recuperados (ATR) do setor encontra-se praticamente estagnada na faixa de 87 a 94,4 milhões de toneladas, com uma moagem de cana, em todo o Brasil, entre 600 e 670 milhões de toneladas. São mais de 12 anos de virtual estagnação. Não que o setor tenha ficado parado. Investimentos foram feitos para aumentar a flexibilidade industrial para a produção de açúcar ou etanol e de etanol hidratado ou anidro, e, em alguns poucos casos, diversificações para etanol 2G e biogás/biometano.
 
Em verdade, à oferta de etanol produzido a partir da cana, vêm se somando volumes crescentes de etanol produzido a partir do milho, que tem dado suporte à manutenção e, em alguns momentos, expansão do uso do etanol no mercado de combustíveis do ciclo Otto. Isso tem ocorrido de forma relativamente rápida. Em 2015/16, a produção de etanol de milho passou de apenas 141 milhões de litros, para, em 2022/23, atingir a marca de 4,6 bilhões de litros de etanol de milho. Até 2031/32, projetos em andamento e em fase de planejamento projetam uma produção de etanol de milho de 9,65 bilhões de litros por ano.

A expansão do etanol de milho, em usinas dedicadas ou anexas a plantas de processamento de cana, é virtuosa, pois agrega valor ao grão, gera subproduto de alto valor proteico (DDGS) e óleo que impulsionam a intensificação da pecuária, liberando áreas de pastagem para expansão da agricultura, permitindo a geração de produtos de maior valor e menor impacto logístico.

No entanto, no setor de cana, têm sido muito poucas as iniciativas no sentido de materializar investimentos adicionais em moagem ou difusão da cana. Têm ocorrido, sim, operações de fusão e aquisição de ativos que se encontravam paralisados por conta de crises anteriores, em particular a mais recente, de 2011 a 2014, advinda do controle de preços sobre a gasolina, algo que já havia acontecido no período de 1985 a 1989, mas muito poucos investimentos adicionais.

Novos investimentos em expansão não têm ocorrido, mesmo tendo havido a aprovação e plena vigência atual de metas de descarbonização do RenovaBio aprovadas até 2032, que projetam uma demanda de 99,22 milhões de toneladas de CO2 equivalente (tCO2e) por ano, com uma variação já admitida entre 90,79 e 107,72 milhões de tCO2e por ano. 

Vale lembrar que a meta aprovada para 2023 é de 37,50 milhões de tCO2e, e que, em 2022, foram gerados 31,448 milhões de tCO2e, com vendas basicamente de etanol e biodiesel, embora ainda haja potencial para biogás/biometano e bioquerosene. Considerando que a cana-de-açúcar tem, no Brasil, um ciclo de produção médio de 5 a 6 anos, estamos distantes pouco mais de um ciclo de cana do atingimento do período em que essas metas precisariam estar sendo cumpridas.
 
Portanto, mesmo com uma regulação eficiente em vigor, não têm sido geradas as condições para viabilizar ou estimular investimentos privados que possam atingir essas metas. Uma das explicações pode estar na própria reação do governo que, em 2022, reagiu ao atingimento do preço do crédito de descarbonização (CBIO) ao alcançar valores que ultrapassaram R$ 200 por tCO2e. Embora esse valor fosse ainda muito distante de valores observados em mercados similares de carbono, como a Califórnia, onde se superaram US$ 200 por tCO2, ou à União Europeia, onde se chegou a mais de US$ 85 por tCO2e, o governo brasileiro, durante a última administração federal, mostrou que não estava disposto a admitir valores de tal magnitude, desvirtuando o programa RenovaBio com alterações de sua regra básica e metas.
 
Para o RenovaBio funcionar em sua plenitude, seria preciso que, uma vez definida e aprovada a meta de descarbonização, o valor do CBIO fosse aquele necessário e suficiente para estimular novos investimentos. Não foi isso que se verificou na prática, pois o governo preferiu priorizar o impacto no preço do combustível fóssil ao consumidor no curto prazo, no lugar da possibilidade de atingir a sua própria meta de longo prazo.

O preço do CBIO deveria também cobrir o obstáculo a novos investimentos, que é gerado pela elevada taxa de juros real, que também inibe investimentos. A verdade é que, mesmo com a aprovação de uma regulação eficiente e moderna como o RenovaBio, a falta de uma clara visão estratégica de longo prazo tem impedido a sua eficácia como mecanismo indutor de planejamento. Essa mesma falta de visão estratégica tem impedido uma expansão mais vigorosa da geração elétrica de biomassa. Seus atributos positivos são inúmeros, como o fato de ser energia firme e não intermitente como as energias eólica e solar fotovoltaica, embora sendo sazonal, mas com sazonalidade benéfica e favorável ao planejamento do setor elétrico.
  
Ou o fato de ser gerada próxima aos centros de carga (próxima às cidades), poupando investimentos em linhas de transmissão e perdas de transmissão estimadas no Brasil em cerca de 11% do consumo total. É gerada no período de inverno, complementando com perfeição o regime de geração do nosso enorme parque hidroelétrico, responsável por 72,1% de toda a geração elétrica do País em 2022, elevando a base de geração do sistema hidroelétrico sem que fossem necessários novos investimentos. 

A energia de biomassa gerada principalmente nos meses de inverno, quando ocorre a colheita da cana na principal região produtora do País, portanto valiosa por sua sazonalidade, recebe uma tarifa que varia em torno de R$ 260 a 320 por MWh. Enquanto isso, o sistema elétrico interligado remunera usinas térmicas movidas a energia fóssil ? em muitos casos, óleo diesel importado, que onera a balança comercial e gera emissões de gases do efeito estufa a tarifas acima de R$ 1.800 por MWh. 
 
A mesma falta de visão estratégica que interfere no RenovaBio, não permitindo que o programa cumpra o proposito para o qual foi criado, também não reconhece o valor da energia elétrica de biomassa que poderia estar sendo gerada com caldeiras mais eficientes e modernas em usinas de cana-de-açúcar, reduzindo o custo de fabricação do açúcar e do etanol, tornando-os mais competitivos para os consumidores, gerando mais créditos de descarbonização e mais possibilidades de cumprimento de metas ambientais pelo País. Caso houvesse essa visão estratégica, deveriam estar sendo criadas linhas especiais de financiamento através de bancos de fomento, como o BNDES e outros, para impulsionar o aproveitamento desse potencial hoje desperdiçado.

A falta de visão estratégica impede também que se enxergue e reconheça que o Brasil desenvolveu, nas últimas décadas, uma tecnologia automotiva eficiente, utilizando biocombustíveis, que permite ao País dispor do veículo de menor emissão de CO2e em todo o mundo, na avaliação do ciclo de vida. Em realidade, o Brasil possui todas as condições de se posicionar como supridor de tecnologia de mobilidade sustentável para o mundo, como está fazendo, neste momento, para a Índia. Nas últimas quatro décadas, o Brasil desenvolveu uma bem-sucedida tecnologia automotiva calcada na utilização de combustíveis líquidos de baixa pegada de carbono, capazes de utilizar eficientemente etanol e biodiesel, e já se encontra tecnologicamente pronto para deslanchar o uso de biometano em ônibus e veículos pesados, todos com muito baixa pegada de carbono. O Brasil é também um dos maiores produtores e exportadores de minério de ferro, matéria-prima básica para a produção de aço. Tem uma competente indústria local de produção de plásticos e elastômeros, inclusive com relevante produção de plásticos verdes.
 
Além disso, dentre as maiores economias do mundo, possui a matriz energética mais renovável, capaz de produzir aço, componentes e peças com baixa pegada de carbono que podem alavancar o processo de eletrificação com motorizações que otimizem o uso de combustíveis limpos e renováveis, acelerando a adoção de tecnologias híbridas que associam essas vantagens à adoção de uma eletrificação, que utiliza a infraestrutura já instalada de distribuição de energia na forma de combustíveis limpos. Uma tecnologia que é, ao mesmo tempo, limpa e acessível em preço para o consumidor e que permite às montadoras atingir o tão sonhado objetivo de emissão zero até 2050.

Uma política industrial alicerçada na valorização da tecnologia desenvolvida no Brasil, para produção local de veículos de baixa emissão e elevado rendimento e a exportação desse modelo de mobilidade para outros países, é uma oportunidade que o País, seus empresários e trabalhadores deveriam reconhecer, valorizar e aproveitar. 

Estímulos à conversão de veículos antigos e mais poluidores, por novos com menores emissões, associados à devida reciclagem de materiais e recompensas aos consumidores pelo uso de combustíveis renováveis, poderiam recuperar e alavancar uma indústria automotiva, que é estratégica e de grande impacto para o desenvolvimento econômico e social por seu elevado efeito multiplicador.

Uma nova reindustrialização do País poderia estar sendo estimulada, caso houvesse uma visão estratégica para um planejamento integrado dos setores de energia, meio ambiente, industrial e agroindustrial e de comércio exterior. Oportunidades valiosas têm sido desperdiçadas por falta de uma visão estratégica. 

No início de um novo ciclo, só podemos desejar que prevaleça o bom senso, o espírito público e o interesse geral, para que sejam criadas condições que estimulem o investimento privado nessa direção.