Se você, leitor, dedicar um tempo a pesquisar o significado de “pacto”, certamente encontrará distintas definições, que vão desde os pactos econômicos até os pactos sociais, passando por pactos políticos, setoriais, etc. O que todos eles têm em comum é a busca de um consenso entre as partes envolvidas, que procuram satisfazer, em maior ou menor grau, seus interesses individuais. Uma vez mais, a revista Opiniões nos convida a uma sofisticada reflexão, na busca de um pacto envolvendo todo o setor sucroenergético e os atores que nele têm interesses.
Uma vez mais, também, o setor sucroenergético parece carecer de um pacto setorial que promova seu desenvolvimento sustentável, permitindo que, no futuro, novas crises similares à presente, que, aparentemente, se avizinha do final, possam se repetir. Um olhar histórico sobre o setor nos revela uma nítida correlação entre pactos e crises, pelas quais o setor costuma passar com assustadora frequência.
É raro encontrarmos, na economia brasileira, setores que enfrentem tantos ciclos de instabilidade quanto o setor sucroenergético – especialmente em função das incertezas em relação a preços de seus principais produtos. O setor, infelizmente, em termos econômicos, é particularmente sensível a fatores alheios às leis de mercado, especialmente em relação a preços do etanol e da bioeletricidade. Curiosamente, as oscilações bruscas do setor são menos resultado das variações dos preços do açúcar que das oscilações dos preços do etanol e da bioeletricidade.
Uma possível explicação é que os preços do açúcar, como commodity negociada em bolsa em mercados futuros e/ou spot, permitem uma maior previsibilidade em relação às variações de valor, permitindo uma adequação de caixa às empresas em tempo hábil. No caso do etanol e da bioeletricidade, as variações são imprevisíveis, muitas vezes abruptas, e frequentemente muito intensas – a notar, por exemplo, quando houve a redução de adição de etanol anidro à gasolina de 25% para 20% em fevereiro de 2010, ou ainda quando os preços do etanol foram mantidos congelados por praticamente cinco anos, até o final de 2015, em decorrência da política de preços praticada pela Petrobras em relação à gasolina.
As variações de preços do MW/h aos produtores, no caso da geração de eletricidade a partir da biomassa de cana, são também velhas conhecidas dos empresários do setor, oscilando de formas absolutamente imprevisíveis, com variações que podem ser tão amplas quanto preços superiores a R$ 800,00 por MW/h, mergulhando a valores abaixo de R$ 40,00 por MW/h em curto intervalo de tempo. Esses cenários de imprevisibilidade e instabilidade levam à impossibilidade de uma boa gestão, especialmente no tocante ao planejamento de médio e de longo prazo dos empreendimentos.
Essas incertezas se refletem no restante da cadeia produtiva, que engloba, além das unidades produtivas em si, milhares de produtores de cana-de-açúcar, centenas de empresas industriais e prestadoras de serviços e mais de um milhão de trabalhadores diretamente empregados nas usinas, sem contar outros milhares empregados no seu entorno, especialmente nas indústrias de bens de capital. Neste momento, em que nos aproximamos do que parece ser o final da pior crise da história do setor, diante de tímidos sinais de retomada da atividade, o cenário é quase de terra arrasada. Contam-se às centenas as unidades em dificuldades financeiras sérias, algumas tão graves que, possivelmente, não consigam sobreviver.
Em Sertãozinho-SP, tradicional polo produtor de máquinas e equipamentos para o setor, entre janeiro de 2014 e agosto de 2016, perderam-se aproximadamente 5.000 postos de trabalho nas indústrias locais. Piracicaba-SP enfrenta situação parecida, e produtores de cana amargam prejuízos em quase todo o Brasil, com situação ainda agravada pela instabilidade climática claramente decorrente do aquecimento global – que, paradoxalmente, só não é pior devido à gigantesca quantidade de gases de efeito estufa resgatada da atmosfera pelos nossos canaviais e pela importante redução de emissão desses mesmos gases graças à queima do etanol nos motores de ciclo Otto, seja por seu uso como aditivo, seja por seu uso como combustível principal.
Os municípios canavieiros vêm sofrendo sucessivas (e graves) quedas de arrecadação – tanto naqueles com grande produção de cana, quanto naqueles que têm indústrias que servem ao setor, além da queda abrupta de arrecadação oriunda das receitas das próprias usinas e destilarias.
Diante desse quadro, temos o mesmo de sempre: a busca por um pacto, salvador do setor e dos bravos empreendedores que nele atuam. Infelizmente, parece haver uma tendência a atribuirmos a “culpa” pelos nossos problemas setoriais (e aqui me refiro a toda a cadeia produtiva) e, como de hábito, buscarmos o tal pacto que nos redima de nossos problemas como um todo.
Bem, meus amigos, lamentavelmente, temos interesses comuns (estabilidade, bons preços e altos ganhos para todos os envolvidos) no setor, fragmentados por interesses antagônicos, por culpa das boas e velhas regras de mercado. Acreditam vocês que as usinas, caso se sintam confortáveis, irão pagar preços mais altos por equipamentos industriais, em vez de, se possível (por questões concorrenciais e de mercado), “esgoelarem” os fabricantes que querem, e precisam vender, apenas em função de um “pacto”?
Acreditam vocês que esses mesmos fabricantes, se houver uma demanda aquecida, irão vender seus equipamentos com descontos substanciais para as usinas, em nome de um “pacto”? Ou ainda, será que os trabalhadores da cadeia produtiva, em um mercado aquecido e que esteja demandando mão-de-obra especializada, irão concordar com perdas no poder de compra de seus salários, em nome do tal “pacto”? E os governos irão concordar com efetivas perdas de arrecadação real, para, digamos, facilitar a vida das empresas, em nome de um... “pacto”?
Ora, alguns poderão dizer que certos governos estaduais reduziram, por exemplo, a alíquota do ICMS sobre o etanol e passaram a arrecadar mais. Sim, é verdade – arrecadaram mais em termos de volume financeiro exatamente porque a demanda por etanol aumentou, os preços do produto aumentaram, a base de cálculo aumentou e a receita acompanhou o aumento. Indiretamente, governos que tiveram essa sensibilidade, a começar, diga-se de passagem, pelo governo do estado de São Paulo, conseguiram ganhar mais dessa forma.
Em resumo, o setor, na verdade, não precisa de um pacto, porque, claramente, com base na história, pactos não resolvem o problema crônico da instabilidade, da incerteza e da falta de confiança – que, na soma, são fatores que inibem o investimento, a geração e a distribuição de renda e não “perpetuam” o negócio.
O que o setor precisa, de fato, é de um conjunto de regras estáveis que apenas poderão ser obtidas quando, e se, a política nacional de combustíveis, biocombustíveis, bioeletricidade e outras formas de energias limpas e renováveis forem adotadas como políticas de Estado, e não políticas de governo.
A diferença crucial é que uma política de Estado, uma vez determinada após ampla discussão, tende a tornar-se estável por longos períodos de tempo, podendo, eventualmente, ser alterada apenas mediante ampla negociação com a sociedade e com seus representantes no Congresso Nacional. Por sua vez, política de governo é aquela que oscila ao sabor dos humores dos mandatários de ocasião.
Recentemente, vimos, na prática, o que isso significa: nos anos do primeiro governo Lula da Silva, então um apaixonado pelo setor, houve bonança e crescimento. A partir do segundo mandato, Lula inclinou-se rumo aos combustíveis fósseis, por conta das perspectivas fabulosas do pré-sal; posteriormente, durante o governo Dilma, que nunca escondeu sua antipatia pelo setor, houve o sofrimento atroz imposto a um setor que, como produtor de energias, depende fundamentalmente de regras impostas pelo governo.
Portanto a conclusão a que podemos chegar é a de que, menos do que pactos temporários e ineficazes como solução perene, precisamos de lideranças que superem, ao menos momentaneamente, as diferenças inerentes aos players diversos do setor em busca da definição de regras claras, que nos permitam, enfim, após tantas idas e vindas, criar um programa federal de combustíveis e energias renováveis.
A sociedade, por sua vez, precisa determinar que tipo de economia sustentável deseja e estar disposta a pagar um preço pelo valor que possa vir a ser agregado. Uma vez estabelecidas todas as principais regras do jogo, deixemos os agentes econômicos envolvidos continuarem suas disputas por melhores resultados individuais para seus negócios. Economia de mercado se faz desse jeito; mesmo com todas as suas imperfeições, ainda é a melhor forma de fazer com que qualquer setor possa evoluir.
Somos todos adultos, maduros e responsáveis.
O que nos falta é previsibilidade e regras confiáveis.
O resto a gente faz.