Me chame no WhatsApp Agora!

Gustavo Mockaitis

Professor do Grupo Interdiciplinar de biotecnologia na agricultura e no meio ambiente da Feagri-Unicamp

OpAA74

Em busca de um novo biocombustível
A vinhaça é o maior subproduto da produção de etanol em termos de volume. Para cada litro de etanol produzido, se produz de 8 a 18 litros de vinhaça. A vinhaça é o resíduo do processo de destilação do mosto fermentado da cana-de-açúcar e consiste em um líquido com elevada carga orgânica. Esse subproduto é rotineiramente empregado na fertirrigação da cana-de-açúcar nas regiões produtoras, de maneira a devolver ao solo parte dos nutrientes e da água utilizada no processo de produção. Apesar da prática da fertirrigação trazer vários benefícios, a não observância de algumas regulamentações já demonstrou que o abuso ou o mal gerenciamento da fertirrigação pode causar danos ambientais de difícil abordagem, como salinização do solo e contaminação de águas subterrâneas com constituintes da vinhaça.

Uma das maneiras utilizadas no gerenciamento da vinhaça é a digestão anaeróbia, que é um processo biológico de tratamento de resíduos amplamente utilizado para outros resíduos. Porém o processamento da vinhaça por meio da digestão anaeróbia apresenta inúmeros desafios, como os grandes volumes produzidos e a elevada carga orgânica da vinhaça (cerca de 100 vezes maior que o esgoto doméstico), além do processo não conseguir eliminar a salinidade desse resíduo. 

Outro problema é a entressafra da cana-de-açúcar, fazendo com que o processo de produção da vinhaça seja interrompido por cerca de três meses, constituindo um problema operacional sério, uma vez que a digestão anaeróbia se trata de um processo biológico que leva muito tempo para se estabelecer de maneira estável e eficiente.

O processo de digestão anaeróbia foi desenvolvido originalmente para a mitigação de impactos ambientais oriundos do lançamento de resíduos com elevada carga orgânica e de nutrientes. A aplicação do processo no tratamento da vinhaça é adequada, apesar dos desafios apresentados. O processo de digestão anaeróbia transforma matéria orgânica em biogás, que é uma mistura de metano e CO2, além de outros gases em menor quantidade. No paradigma de gerenciamento de resíduos, o biogás é um problema, pois o metano é um dos principais contribuintes para o aquecimento global, sendo um gás de efeito estufa 80 vezes mais poderoso que o CO2.

Esse paradigma de gerenciamento de resíduos objetivando exclusivamente a mitigação de impactos ambientais está ficando obsoleto. As unidades de tratamento eram comumente superdimensionadas e mal operadas, com um grande custo para as unidades produtivas. Assim, fica mais clara a necessidade de se trazer a viabilidade econômica junto com a ambiental, dentro de um conceito mais amplo de sustentabilidade do processo. 

Nesse novo paradigma, é necessário processos que não somente lidem adequadamente com os problemas ambientais, mas também transformem os resíduos obtidos em um produto com valor agregado.

Nesse contexto, a produção de biogás é uma oportunidade para a produção de energia, mas essa aplicação já é bem difundida. Muitas indústrias utilizam os processos de digestão anaeróbia associados a processos de purificação do biogás, de maneira a produzirem o biometano (ou gás natural renovável, com no mínimo de 90% de teor de metano). Ainda assim, muitas dessas indústrias que produzem o biogás para fins energéticos ainda utilizam equipamentos custosos e superdimensionados, além de controles operacionais completamente ultrapassados.

Considerando esse cenário, nosso grupo de pesquisa propõe um avanço maior na direção da valorização da vinhaça como matéria-prima para a produção de biogás, aumentando o potencial energético do biogás produzido por meio da digestão da vinhaça. Para esse fim, estamos investigando modificações no processo de digestão anaeróbia para produzir um biogás enriquecido com hidrogênio, denominado bio-hitano.

O hitano é um gás combustível que consiste em uma mistura de 80% de gás natural e 20% de hidrogênio. O nome desse combustível vem do inglês hythane (hydrogen, methane) e surgiu como alternativa ao gás natural, apresentando o mesmo potencial energético que o gás natural, porém apresentando maior flamabilidade e menores emissões de poluentes. 

Como originalmente o hitano é um gás produzido pela mistura do gás natural com hidrogênio de outras fontes, adotou-se o nome bio-hitano para a mistura de biometano e hidrogênio obtidos pelo processo de digestão anaeróbia.
 
O processo de digestão anaeróbia ocorre naturalmente nos corpos hídricos nas camadas mais profundas, onde o oxigênio dissolvido é escasso, sendo o responsável pela produção de gás dos pântanos (conhecido também como fogo fátuo, que originou a lenda do boitatá). A digestão anaeróbia consiste em uma série de reações bioquímicas complexas realizadas por inúmeras comunidades microbianas anaeróbias e facultativas, que apresentam uma relação ecológica sinérgica. Apesar da complexidade do processo, é possível identificar as etapas de conversão da matéria orgânica complexa em moléculas mais simples.
 
De maneira geral, o processo se inicia pela hidrólise da matéria orgânica complexa que desagrega proteínas, gorduras e carboidratos em moléculas de estrutura mais simples, como aminoácidos, ácidos graxos e sacarídeos. As moléculas produzidas na etapa da hidrólise são, a seguir, convertidas em ácidos graxos com baixo peso molecular (ácidos voláteis), constituídos de 6 a 2 carbonos. Essa etapa recebe o nome de acidogênese.

Esses ácidos voláteis são, por sua vez, convertidos em acetato na etapa subsequente denominada acetogênese. Por fim, esse acetato é convertido em metano na etapa final chamada pela metanogênese. Ao longo de todas as etapas desse processo, são produzidos também o CO2 e o hidrogênio. Entretanto, parte desse CO2 e quase a totalidade de hidrogênio são consumidos por microrganismos para a produção tanto de acetato quanto de metano, por microrganismos que consomem CO2, ao invés de matéria orgânica complexa, para crescerem.
 
O processo biológico de produção de hidrogênio é denominado fermentação escura (dark fermentation) e é obtido a partir da inibição dos processos bioquímicos e seleção dos microrganismos que consomem o hidrogênio dentro do processo de digestão anaeróbia. Como a maior parte dos organismos consumidores de hidrogênio são produtores de acetato e de metano, o foco principal das pesquisas é o desenvolvimento de um processo acidogênico para a produção do hidrogênio.

Outro produto dos processos acidogênicos também são os ácidos voláteis, e eles podem ser convertidos em metano em um processo a jusante do processo acidogênico. Dessa forma, nossas pesquisas têm dois grandes pontos focais: selecionar microrganismos aptos a produzir o hidrogênio de maneira estável e eficiente; e desenvolver um processo produtivo em duas fases para a produção do metano e do hidrogênio. Ainda há muitos desafios a serem enfrentados, mas, superados os problemas, um novo tipo de biocombustível irá compor a matriz energética do futuro: sustentável e eficiente energeticamente.