Presidente do Fórum Nacional Sucroenergético e da Siamig - Associação das Indústrias Sucroenergéticas MG
Etanol ou gasolina? Você certamente já ouviu (ou disse) essa frase. Mas o que você sabe sobre os carros flex? Tecnologia 100% brasileira comemora duas décadas neste ano. Bem, antes de temas como descarbonização ou mobilidade sustentável ganharem o mundo, o mercado automotivo brasileiro já se notabilizava pela peculiaridade de usar um combustível limpo, o etanol, como fonte energética em seus motores a combustão.
O carro flex fuel caiu no gosto popular dos brasileiros, sendo um item indispensável na hora de se comprar um automóvel novo. A vantagem de poder escolher o combustível no momento do abastecimento, e não mais na concessionária, trouxe mais liberdade ao consumidor.
A história do uso do álcool, ou etanol, como combustível no Brasil, remonta aos anos 20 do século passado com o uso do USGA , desenvolvido pela centenária Usina Serra Grande, em Alagoas, e ganhou grandes proporções com as consequências dos choques dos preços do petróleo na década de 1970, primeiro com a intensificação do uso do etanol misturado à gasolina e, depois, com o lançamento, em 1979, do primeiro veículo a álcool hidratado no Brasil. Do sucesso das vendas dos veículos a álcool, na primeira metade da década de 1980, às dificuldades vistas no final dessa década e ao longo da seguinte, o Brasil desenvolveu um sistema de produção e distribuição de etanol que atingiu os quatro cantos do País.
Ao final de 2002, as vendas de carros a álcool no Brasil representavam “traço” na estatística, e a frota circulante caía a cada ano, chegando a representar 15%. A oferta ainda consistente de etanol mantinha, naquele momento, os preços bem competitivos, e muitos consumidores passaram a misturar gasolina e etanol no momento do abastecimento por conta própria, o chamado “rabo de galo”.
A indústria automobilística já desenvolvia, desde a década de 1980, uma tecnologia que permitisse que os veículos operassem com etanol e gasolina ao mesmo tempo. Em março de 2003, a tecnologia flex fuel estreou com a Volkswagen apresentando, durante a festa de comemoração de 50 anos de operação no País e com direito à presença do então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, o Gol 1.6 Total Flex.
O modelo da Volkswagen seria o primeiro de uma série de lançamentos que ganharam o mercado, com a nova tecnologia: o flex brasileiro, como foi batizado, capaz de consumir etanol, gasolina ou qualquer mistura entre os dois combustíveis, de modo a dar, ao consumidor final, o direito de escolha do combustível a cada abastecimento, considerando seu custo, disponibilidade ou qualquer outro atributo de sua conveniência.
O crescimento da frota capaz de abastecer com etanol devolveu ao hidratado o potencial de concorrência com a gasolina. Uma ampla janela de oportunidades se abria para o setor sucroenergético brasileiro, e o mercado interno voltava a ser ponto fundamental para o crescimento do setor no Brasil. Naquele momento, o mercado era sustentado pela mistura obrigatória de etanol anidro na gasolina e por uma frota em acelerada depreciação dos antigos carros a álcool. O lançamento do carro flex e o seu sucesso a partir de 2003 mudam, de forma estrutural, o setor sucroenergético e todo o mercado de combustíveis no Brasil. Os dados históricos demonstram a grande aceitação do flex fluel pelos consumidores, após 2 anos de mercado, os veículos flex já representavam mais da metade das vendas no País.
A evolução do flex no Brasil decorre de uma série de fatores que auxiliaram a dinâmica da oferta de novos modelos de automóveis com essa tecnologia, o crescimento da produção de etanol no País e o incremento das estruturas logísticas, transporte, armazenamento e bombas nos postos de combustíveis.
O País passou por um crescimento vertiginoso de sua frota nos anos subsequentes ao lançamento do flex, o que possibilitou sua rápida renovação. Atualmente, de cada 100 veículos rodando nas ruas e rodovias do País, 84 são flex e podem ser abastecidos com etanol. Além disso, o crescimento da preocupação ambiental e o aumento dos preços do petróleo elevaram os preços da gasolina, dando ainda mais espaço para o combustível limpo e renovável.
Contudo, a mudança mais estrutural que se viu foi uma série de políticas públicas focalizadas no etanol e na sua competitividade a partir da criação de um diferencial tributário, tanto em nível federal quanto estadual. Já em 2001, o Governo Federal lançou a CIDE-Combustíveis, incidindo sobre combustíveis fósseis. Em dezembro de 2003, o então governador de São Paulo e atual vice-presidente da república, Geraldo Alckmin, sancionou a lei que reduzia a alíquota ICMS do etanol hidratado de 25% para 12%, tornando-se o primeiro estado a adotar essa medida. A lei entrou em vigor em 2004 e foi seguida por outros estados nos anos seguintes.
Atualmente, 14 estados estabelecem diferenciais tributários de ICMS entre etanol hidratado e gasolina. A questão é tão crucial a esse mercado que, em 2022, o Congresso Nacional decidiu por colocar na Constituição Brasileira, no seu capítulo que trata de meio ambiente, a obrigatoriedade de apresentar um diferencial tributário entre etanol e gasolina no que tange aos impostos federais e estaduais. Com tributação menor e mais competitivo que a gasolina, o consumidor era incentivado, além de comprar um veículo flex, a também abastecer com o etanol hidratado.
Os 20 anos do carro flex fuel chegam quando as atenções do mundo se voltam para as fontes alternativas de energia de baixa emissão, em que o etanol precisa ter um grande destaque. Além da forte tendência global de eletrificação no setor automobilístico.
O conjunto de agentes de mercado que compõem o ambiente do etanol no Brasil está atento a essa tendência e, em um movimento de antecipação, quer fazer da ameaça de mercado uma oportunidade para consolidar o papel socioambiental do biocombustível.
A eletrificação de veículos é associada aos carros movidos a bateria. Mas essa não é a única possibilidade, existem alternativas, como os modelos híbridos flex, já lançados no Brasil, e a célula a combustível. Nesse último, o etanol é fonte de hidrogênio que alimenta o sistema em forma de energia.
O Brasil é um mercado pioneiro na junção do etanol à eletrificação, em busca de soluções para reduzir o impacto ambiental. O carro híbrido e o movido a hidrogênio são possibilidades diferenciadas dentro do mercado brasileiro, já contam com apoio da indústria automobilística e de diferentes montadoras. Para um país que criou sua própria rota nos últimos 50 anos para driblar crises e incentivar ainda mais suas vocações internas, não nos parece difícil pensar que, no futuro da mobilidade sustentável, o etanol continuará tendo protagonismo, inclusive para além das fronteiras brasileiras.