Em 2016, durante os Jogos Olímpicos de Verão, a Nissan apresentou ao mundo, no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, o conceito e-Bio. Primeiro veículo elétrico (EV) no mundo a utilizar o bioetanol em uma célula combustível. Esse veículo-conceito trazia resultados promissores: 600 km de autonomia com 20 L de etanol, livre de emissões nocivas à saúde e, acima de tudo, usava biocombustível renovável.
Dessa forma, tínhamos, no horizonte, um EV que poderia ser abastecido em qualquer posto com etanol diretamente da bomba, sem dependência de infraestrutura, com rápido tempo de abastecimento, renovável e com uma pegada de carbono menor (emissões de “poço à roda” em comparação com veículos elétricos com uso de matrizes energéticas da Europa, EUA e China) do que veículos elétricos a bateria (BEV).
No centro dessa tecnologia, estava a célula de combustível, mais especificamente, a SOFC (Solid Oxide Fuel Cell), desenvolvido em conjunto com a AVL, empresa de origem austríaca de tecnologia para mobilidade.
A tecnologia SOFC, em si, não era uma novidade, objeto de estudo já há décadas. A inovação estava em associá-la a um reformador de etanol capaz de produzir o hidrogênio para alimentar a célula, integrar os sistemas, miniaturizar e embarcar em um veículo, um belo desafio à engenharia, com soluções elegantes de gestão energética desse sistema – veja imagem em destaque.
Esse sistema, com pouco mais de 50 cm de comprimento, é capaz de converter etanol em 5 kW de potência elétrica continuamente, ou seja, provê ao carro elétrico energia direta para tração e/ou para recarga contínua das baterias, estendendo, assim, a autonomia do veículo de 200 km para 600 km, além de reestabelecer a carga da bateria em 100% do seu estado de carga.
No diagrama – também em destaque –, podemos ver o funcionamento básico do sistema. O etanol, abastecido e armazenado em um tanque convencional, é injetado e vaporizado no reformador, um elemento-chave do sistema responsável pela reação do hidrocarboneto com água, sob alta temperatura para gerar hidrogênio e monóxido de carbono (gás de reforma).
Esses produtos são, então, convertidos na célula combustível em vapor de água e dióxido de carbono (assim como a expiração humana), eletricidade e calor. Esse vapor de água produzido é reciclado para ser justamente utilizado no reformador. Já o calor resultante (reação exotérmica) é direcionado ao reformador (reação endotérmica); fechando, dessa forma, o ciclo térmico no sistema é capaz de alcançar 55% de eficiência energética.
Como esse sistema trabalha sob temperaturas mais elevadas, na região de 600°C, é um sistema pouco transiente, entregando continuamente a potência de trabalho. Dessa forma, a sua função primária não é a de fornecer potência diretamente ao motor elétrico de tração e sim à bateria (essa podendo ser até 50% menor). 5 kW pode parecer pouco, mas, quando consideramos a potência média em um ciclo de trabalho, ciclo urbano por exemplo, ficamos uma boa parcela do tempo parados ou mantendo velocidades de até 60km/h.
Para esse ciclo de direção (duty cycle), considera-se justamente pouco menos de 5 kW de potência média para um veículo compacto. Para veículos urbanos de carga e vans, 15 kW seriam aplicáveis; já um ônibus urbano demandaria um sistema de 25 kW, e vale aqui ressaltar esse último exemplo como um grande potencial para solução de transporte urbano limpo e sustentável para as metas de redução gradativa de CO², como está delineado, por exemplo, pela lei municipal 16.802 para a cidade de São Paulo (embora, no veículo elétrico, não haja emissões de CO² ; para uma correta análise, faz-se necessário somar as emissões de CO² geradas para produzir essa energia elétrica.)
Cinco anos se passaram desde a Olímpiada; estamos em 2021 e, apesar de todo o potencial e óbvia aplicabilidade da tecnologia SOFC no Brasil, não vemos notícias de lançamento de veículos com essa tecnologia no Brasil. E por quê? Como sempre, precisamos enxergar o cenário global e entender principalmente o momento pelo qual o setor automotivo está passando.
O setor automotivo passa por uma turbulenta evolução (ou revolução se preferir), com uma corrida global entre as montadoras para desenvolver o seu portfólio de EV e eletrificados, soluções para conectividade com funções de assistência de condução, veículos autônomos.
Essa corrida coloca ainda maior pressão sobre recursos de P&D, que são, obviamente, canalizados para os principais mercados, como Europa, China e EUA. Isso significa que soluções específicas para mercados emergentes não estão no eixo principal e adotarão basicamente as soluções já existentes em composição com soluções globais.
Significa que, para o Brasil, e aqui especificamente para a adoção da tecnologia SOFC, ações locais e coordenadas são necessárias
para que possamos usufruir de seus benefícios e também garantir que o etanol faça parte da mobilidade veicular no longo prazo; e aqui os setores envolvidos e o governo devem se questionar, avaliar e tomar uma decisão consciente se seremos protagonistas e donos da nossa estratégia de mobilidade sustentável ou apenas futuros clientes dessa tecnologia, ou, ainda, de outra tecnologia menos vantajosa para o País.
É certo e importante comentar que tecnologia SOFC ainda requer maior maturidade e economia de escala, mas é justamente nesse momento que ainda permite novos entrantes, entre a transição de uma inovação para uma tecnologia mainstream. Empresas como a Ceres Power e a Bloom Energy viram seu valor de mercado triplicarem nos últimos anos em função do potencial de entregar valor futuro. Aguardar entrar em 5 anos ou mais significa possivelmente perder essa corrida, como ocorreu no caso das baterias de lítio: países como Coreia do Sul, China ou Europa estão 15 ou 20 anos à frente e só serão alcançados quando a tecnologia já rumar para status de commodity.
O agronegócio é, certamente, uma das nossas grandes vocações, mas se faz necessário encontrar áreas e tecnologias correlatas para impulsionar a geração de valor. O Brasil possui uma posição invejável quanto à disponibilidade de energia renovável, quer seja por hidroelétricas, solar, eólica ou biocombustíveis. E, nesse último caso, o uso de biocombustíveis só não é vantajoso para aqueles países que não os têm.
Acredito na necessidade de se criar um Plano de Introdução Tecnológica para a SOFC, a exemplo da Alemanha e do Japão para o mercado de estacionário, uma ação coordenada entre governo, iniciativa privada e instituições do conhecimento. Adquirindo tecnologia básica, transferindo conhecimento para instituições, aprimorando materiais, processos produtivos e desenvolvendo a cadeia de fornecimento em etapas de geração de valor nacional, a exemplo do que a ENERFE está realizando na Argentina com a tecnologia SOFC.
Caberia ao governo estabelecer objetivos de longo prazo, canalizar recursos e criar regulamentações justas ao biocombustível, como avaliar emissões de CO² sempre com base em emissões do “poço à roda”, levando, assim, em consideração o processo de geração da energia como um todo. Dessa forma, se estabelecem as bases mínimas para introdução da tecnologia SOFC e, por consequência, o potencial de solução para a mobilidade sustentável para o Brasil, ambiental e economicamente.