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Marcos Silveira Bernardes

Professor de Produção Vegetal da Esalq-USP

Op-AA-17

Ideótipo de cana: romantismo, idealização ou tomada de rumo

É unanimidade que a cana-de-açúcar deve elevar o patamar de produtividade no campo e na indústria, apesar do setor já ter um histórico de contínua e positiva melhoria. A quantidade de cana que é colhida no campo e o seu conteúdo de açúcar aumenta, pelo menos, em 1% ao ano. A eficiência de transformação na indústria também tem crescido continuamente e vez ou outra dá um salto, como no caso da capacidade de cogeração. Entretanto, o estoque de novidades está terminando.

Atualmente, a geração de conhecimento pela pesquisa e a inovação tecnológica são os principais limitantes, uma vez que o país não investiu o suficiente nas últimas duas décadas. Fomos especialmente mesquinhos na alocação de recursos para pesquisar a planta de cana e seu funcionamento. Para cobrir essa lacuna, necessita-se de grande alocação de recursos, combinada com aplicação eficaz e retornos rápidos.

Assim, em termos práticos, restam as dúvidas: Qual o objetivo a ser almejado? Quais os caminhos a seguir? Nesse contexto, insere-se o uso de modelos matemáticos de simulação, que têm sido usados pela humanidade para, antes de tudo, gerar objetivos idealizados e pesquisar formas de atingi-lo. Eles permitem que o processo cíclico de “tentativa - erro - adequação - nova tentativa...”, inerente à pesquisa, ocorra com maior eficácia. O primeiro passo é descrevermos o ideótipo de cana.


Esse termo, proposto por Donald, na década de 60, em analogia aos termos genótipo e fenótipo, descreve o modelo biológico idealizado, que age e comporta-se de forma previsível num dado ambiente, do qual se espera que resista aos estresses bióticos e abióticos e tenha máxima produtividade, tanto em quantidade, quanto em qualidade. A cana ideal. Sabemos, pelo menos grosseiramente, que a cana-planta, em condições brasileiras, com irrigação suplementar, tem que produzir algo entre 350 e 420 toneladas de colmos industrializáveis por hectare, com 160 kg de sacarose por tonelada, com ciclo de 12 a 22 meses. Para chegarmos ao ideótipo da cana, quais os processos fisiológicos atualmente mais limitantes?

Também parece unanimidade que pouco se estudou quanto à eficiência da interceptação, absorção e assimilação da radiação luminosa, refletindo em mais fotossíntese e produtividade. Por outro lado, vários estudos mostram pequena correlação entre o aumento da fotossíntese e a produtividade das culturas. Por quê? Vários pesquisadores, atualmente, tentam buscar maior eficiência do aproveitamento da luz, criando variedades de cana com folhas mais eretas, baseadas em estudos teóricos e práticos com outras culturas. As folhas eretas permitem boa distribuição de luz por toda a copa das plantas, mesmo com grande área foliar. Para a cana, isso funciona dentro de condições específicas.

Para uma grande área foliar, expressa como Índice de Área Foliar - IAF, de 6,5, na parte da frente no gráfico, feito através de modelo matemático clássico, verifica-se que a fração de luz perdida com folhas eretas, em comparação com folhas planas, fica na faixa de 0,1, com pequena mudança, mantendo-se a vantagem de excelente distribuição de luz pela copa das folhas eretas.

Entretanto, quando a cana reduz sua área foliar, reação natural diante de estresse hídrico, outro tema de grande relevância na cultura, a fração de luz perdida com folhas eretas fica na faixa de 0,5 e é muito maior do que a de folhas planas, na faixa de 0,1 (ver parte do fundo do gráfico). Essa perda de luz pelas folhas eretas é superior ao que pode ser compensado com sua boa distribuição de luz na copa, reduzindo, assim, a fotossíntese.

Já no extremo, em condições de estresse hídrico muito acentuado, a reação da cana é de enrolar as folhas para minimizar interceptação de luz, uma vez que essa última é um dos principais fatores para perda de água. Nessa situação, a própria cana mostra-nos que a estratégia de folhas eretas pode atenuar os efeitos do estresse hídrico acentuado, ao contrário do que acontece com estresses intermediários.

Disso, podemos inferir duas proposições. Primeiro, que os modelos matemáticos e teóricos são úteis para traçar cenários, identificar temas de pesquisa, gerar hipóteses, avaliar cenários de difícil replicação ou de custo experimental empírico elevado, para direcionar prioridades, mas não suprimem as pesquisas aplicadas e envolvem análise conjunta de dados, no longo prazo.

Segundo, que a busca por soluções agronômicas em fatores individuais e isolados, como em muitos casos da transformação genética da planta, com manipulação de poucos genes, pode resultar em absoluto fracasso, como já foi a busca por resistência às doenças, com base em caráter de controle oligo ou monogênico.

A busca do ideótipo de cana-de-açúcar numa visão estratégica apregoa a integração de pesquisa e tecnologia nas diferentes áreas de conhecimento, estimuladas igualmente, sempre avaliadas e testadas, em condições de campo. Se gasta muito dinheiro, porém, não há outra forma de evoluir. Os Estados Unidos da América investem mais em pesquisa para viabilizar a produção de etanol de celulose de madeiras retiradas de árvores nunca antes exploradas comercialmente, do que o Brasil com a cultura da cana, sendo o maior produtor do mundo e com 500 anos de história.