Diretor do Departamento de Açúcar e Álcool do Ministério da Agricultura
Op-AA-01
O Brasil sustentou por um período de várias décadas um modelo de desenvolvimento voltado para seus próprios mercados. A implantação de um intenso programa industrial direcionado para o atendimento do mercado doméstico permitiu ao país a instalação de um sólido e diversificado parque industrial. O sucesso do modelo e as altas taxas de crescimento econômico obtidas só foram possíveis pela existência de uma grande população, pela disponibilidade de muitas matérias-primas e de um setor agropecuário razoavelmente desenvolvido.
Além disso, a energia elétrica necessária para alimentar o processo de crescimento foi gerada a partir da construção de um grande sistema de usinas hidroelétricas, tarefa facilitada pela configuração geográfica do país, que dispõe de caudalosos rios de planalto. A limitação mais importante nesse modelo estava na reduzida capacidade de produção de petróleo, suprido, em até 80% da demanda, por importações.
O choque do petróleo no início dos anos 70, que ocasionou pesados déficits na balança comercial, criou um forte impacto sobre a continuidade desse modelo e obrigou o país a promover o redirecionamento de seu processo de desenvolvimento e a revisão da matriz energética nacional. Foi organizado um grande esforço de redução do consumo de petróleo e seus derivados, associados a estudos para viabilizar um combustível alternativo que pudesse reduzir o consumo de gasolina. O álcool etílico carburante foi eleito o substituto da gasolina e um dos componentes capazes de abreviar o período de dificuldades econômicas que o país teria que enfrentar. Em 1975 foi criado o “Pró-Álcool”.
A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA
Antes de prosseguir é preciso abrir espaço para mencionar a excepcional vocação agrícola do Brasil. Além de ser um país continental, o Brasil tem uma geografia bastante favorável à exploração de uma ampla diversidade de atividades agropecuárias. Como sua posição está no sentido norte-sul, com sua fronteira setentrional iniciando-se acima da linha do equador e se estendendo, ao sul, até o paralelo 32, abaixo do trópico de capricórnio, possui quase todos os micro-climas aptos à atividade agropecuária, permitindo produzir, em grandes quantidades, uma ampla variedade de produtos comerciais.
A cana-de-açúcar, originária na Ásia e cultivada desde o século XVI, teve uma adaptação espetacular ao clima tropical e subtropical brasileiro. Nos anos 70, o País já produzia um volume de 70 milhões de toneladas de cana-de-açúcar, 6 milhões de toneladas de açúcar e 0,7 milhão de litros de etanol. A grande aceitação popular do programa do carro movido com álcool etílico hidratado fez com que o comércio desse tipo de veículo crescesse rapidamente a partir do início da década de 80, chegando a atingir uma frota estimada em 4,4 milhões de veículos, em 1994, com o consumo de 9,8 bilhões de litros de álcool.
Outra experiência que se consolidou no início dos anos 90, através de lei específica, foi a mistura do álcool etílico anidro na gasolina na proporção entre 20 e 25%. A criação desses programas massivos de utilização do etanol carburante permitiu ao país tornar-se grande produtor e usuário desse produto. As estatísticas indicam que o nível máximo de demanda ocorreu no ano de 1996, quando o consumo das duas modalidades do produto atingiu 13,8 bilhões de litros.
Atualmente, esse consumo, em decorrência da redução da frota de carros movidos com a álcool, aproxima-se do total de 12 bilhões de litros ao ano. Essa iniciativa, pioneira no mundo, permitiu ao Brasil acumular vasto conhecimento sobre a tecnologia de uso desse produto em motores de ignição por centelha, e nos processos de produção, transporte, armazenagem, aditivação da gasolina e sua distribuição.
A COMMODITY ÁLCOOL
O etanol carburante do tipo anidro é um produto com todos os atributos para se tornar uma commodity no mercado internacional, pois é um combustível seguro, fácil de ser produzido em grandes quantidades e relativamente barato e competitivo. A mistura desse produto na gasolina, na proporção de até 10%, permite, sem afetar o desempenho do motor, melhorar a queima do combustível fóssil e reduzir, em proporções importantes, a emissão de dióxido de carbono e o enxofre, com efeitos imediatos sobre o meio ambiente.
A experiência disponível com o uso do etanol já demonstrou exaustivamente tratar-se de um produto seguro, que não oferece qualquer risco para a integridade dos veículos e à saúde dos cidadãos envolvidos em sua utilização, quer para o consumidor, quer no manuseio nos diversos estágios da cadeia produtiva, não existindo no Brasil registros de acidentes ocasionados por seu uso.
O etanol é um produto fabricado com uma técnica bastante simples e rápida, a partir de diversas matérias-primas, cuja oferta em larga escala, como a cana-de-açúcar e o milho, já está disponível. No Brasil, que destina atualmente um montante próximo a 160 milhões de toneladas de cana-de-açúcar para a produção de etanol, as estatísticas de produção indicam que os níveis de rendimento físico atingem um volume de 6,5 a 7 mil litros de etanol, por hectare.
Nestas condições, a produção de cada milhão de metros cúbicos desse produto exige uma área de cultivo de aproximadamente 150 mil hectares. A atual produção brasileira de lavouras temporárias e permanentes ocupa uma área total próxima de 55 milhões de hectares, sendo que a parcela destinada à cana-de-açúcar representa uma fração de 8% desse total.
Portanto, o aumento em quantidades expressivas da produção de etanol significa a ocupação de pequenos espaços no conjunto das terras cultiváveis do Território Nacional, sem qualquer perda ambiental importante. Pelas condições de que desfruta, o Brasil é um candidato natural a ser grande exportador de etanol carburante. Dependendo dos volumes necessários, a ampliação da oferta para exportação, num prazo bastante curto, pode ser feita pelo Brasil, sem dificuldades operacionais importantes.
Uma maneira de gerar excedentes exportáveis imediatos está na redução do consumo doméstico, por meio de uma medida institucional de redução da mistura obrigatória do etanol na gasolina. Como o país consome aproximadamente 500 milhões de litros de álcool anidro por mês, a redução de cada ponto percentual no nível da mistura representa o decréscimo no consumo de um volume mensal próximo a 20 milhões de litros.
Como o intervalo de variação legal está situado entre 20 e 25%, a redução do consumo, num período de doze meses pode chegar até a 1,2 bilhão de litros. Outra maneira de promover um rápido aumento dos excedentes exportáveis está na redução da produção de açúcar, destinando a matéria-prima para a produção de etanol. A capacidade de produção das destilarias brasileiras é da ordem de 16 bilhões de litros, havendo atualmente uma capacidade ociosa próxima de 3 bilhões de litros.
Portanto, se houver demanda pelo produto, no período que antecede o início da colheita, torna-se viável reduzir a produção dos excedentes exportáveis de açúcar e destinar o caldo da cana correspondente para a produção de etanol. Como a relação técnica de matéria-prima requerida para a produção de açúcar e álcool é de 1 para 1,7, significa que o aumento de 1 bilhão de litros de etanol implicará na redução de cerca de 1,7 bilhão de quilos de açúcar, ou seja, 1,7 milhão de toneladas na produção de açúcar.
O etanol é um produto relativamente barato. As exportações brasileiras de álcool industrial, em volumes próximos a 500 milhões de litros por ano, tem tido um preço médio FOB próximo a US$ 200 por metro cúbico, equivalente a US$ 32 por barril e, portanto, abaixo dos preços médios da gasolina, em tempos recentes.
O INTERESSE BRASILEIRO
O Brasil está pronto para exportar etanol carburante em grandes volumes, para todos os países que tenham interesse em seu uso. No entanto, existem duas questões vitais que precisam ter uma solução anterior ao início das transações:
1. Cronograma de consumo e importação: O etanol carburante não é um produto comum. Seu uso como aditivo à gasolina requer que os países que irão iniciar sua utilização tomem uma série de providências, de caráter institucional e operacional, que permitam sua introdução, paulatina e programada, junto a seus consumidores. Além disso, especialmente para países que dependam de importação do produto, é preciso que haja a garantia da regularidade de seu suprimento.
Uma questão importante a ser previamente equacionada nos países de destino refere-se à implantação da infra-estrutura de movimentação e armazenamento, e à logística de operacionalização da mistura do aditivo e sua distribuição aos consumidores. A experiência no Brasil indica que tais tarefas podem ser solucionadas de maneira convencional, com baixo custo e tecnologia disponibilizada pelas agências e empresas brasileiras.
A produção de combustíveis de fontes renováveis, como o etanol, associada à atividade agrícola deve considerar os ciclos da natureza e sua temporalidade. Dessa forma o nascimento e a consolidação do comércio de grandes volumes do etanol carburante serão facilitados se houver compromissos de compra e venda que definam os fluxos das transações e o consumo do produto ao longo do tempo. O caminho natural para reduzir ao mínimo os riscos dos parceiros comerciais está na negociação de contratos de prazos longos, que criem as condições necessárias para as partes tomarem as iniciativas que resultem no processamento e na entrega do produto.
2. Mecanismo de formação dos preços de comércio: A inexistência de negócios em grandes volumes com etanol carburante no mercado internacional, reflete-se na ausência de cotações nas bolsas internacionais para balizar os negócios. Como trata-se de um comércio novo, os contratos de compra e venda devem prever as regras que disciplinarão o comportamento dos preços.
No Brasil, pelo fato da industrialização do etanol desenvolver-se em comunhão com a industrialização do açúcar de forma natural, devido à operacionalidade básica do processo da matéria-prima de ambos, do ponto de vista do empresário exportador, um critério atraente de formação dos preços do etanol estaria na sua vinculação com as cotações do açúcar em bolsas internacionais.
Do ponto de vista do país comprador, entretanto, que deve usar o produto como um aditivo carburante da gasolina, um indicador alternativo de formação de preços de comércio está nas cotações mundiais do petróleo, ou da própria gasolina. De qualquer modo essa é uma questão aberta a ser negociada entre as partes, que precisa ser cuidadosamente prevista nos contratos.
Os países envolvidos não podem iniciar um empreendimento de grandes proporções, sem que os riscos econômicos e comerciais associados estejam adequadamente administrados. Os programas de produção (no país de origem) e consumo (no país de destino) do etanol carburante precisam ter um horizonte temporal definido para prevenir qualquer chance de fracasso em sua execução.
ASPECTOS AMBIENTAIS
Outro aspecto que precisa ser enfatizado está nos grandes benefícios ambientais que o uso do etanol proporciona. Aliás, tais benefícios aparecem nos dois estágios de sua produção, o agrícola e o industrial, além da fase do consumo.
a. Ganhos associados à produção de cana-de-açúcar: A cana-de-açúcar é uma gramínea, nas condições em que é cultivada no Brasil, permite sua exploração econômica por um período de cinco a sete anos. Isso porque, uma vez vencido o seu primeiro período vegetativo, cuja duração varia de acordo com a variedade de 12 a 18 meses, ela permite vários cortes sucessivos anuais, por um período médio de cinco anos, bastando, para tanto, realizar os tratos culturais rotineiros de adubação e controle de plantas invasoras nos canaviais.
Assim, durante a vida economicamente útil da planta, que rebrota e floresce a cada ano, ela consome um volume próximo a 13,6 toneladas de dióxido de carbono por hectare de cultura. Essa planta é uma verdadeira usina de despoluição.
b. Ganhos na fase industrial: O processo de fermentação do caldo da cana gera uma grande quantidade de resíduos líquidos, na proporção de oito litros de vinhoto para cada litro de etanol. A alta concentração de potássio nesse produto permite que ele seja devolvido ao solo através de um processo de irrigação, substituindo o potássio originado de rochas, proporcionando um óbvio ganho ambiental.
c. Geração de energia elétrica: No processo de moagem da cana-de-açúcar cerca de 28% de seu peso é representado pelo bagaço, resíduo seco, que, entre outros usos, pode ser queimado como combustível nas caldeiras, gerando a energia termodinâmica e elétrica que move o complexo industrial. No Brasil, 100% das usinas e destilarias geram a energia necessária a seu próprio funcionamento.
A energia elétrica atualmente gerada no setor está em torno de 3 mil megawatts e tem o segundo menor custo de geração, perdendo apenas para a energia gerada pelas hidroelétricas cujos custos fixos já foram amortizados pelo tempo de uso. O potencial de geração desse sistema, se as unidades de produção se dispusessem a usar tecnologias mais modernas e caldeiras de alta pressão no processo, ascende a 8 mil megawatts de potência nominal. Um indicativo global da enorme capacidade da cana-de-açúcar de comportar-se como um processador energético, está na sua capacidade de gerar 11 unidades de energia limpa e renovável requerendo apenas uma unidade de energia de origem fóssil.
d. O álcool como combustível: A mistura de etanol anidro à gasolina permite homogeneizar a queima dos diferentes hidrocarbonetos que entram na composição físico-química do combustível fóssil reduzindo a emissão de gases tóxicos. Porém, a questão essencial que deve ser destacada está na grande redução da emissão de dióxido de carbono (CO2).
De acordo com estudos do Centro de Tecnologia da Copersucar, considerando todo o ciclo da produção, a substituição da gasolina por etanol anidro proporciona uma redução de emissões na razão de 2,7 toneladas de CO2 equivalentes por 1.000 litros de etanol. Nestas condições, o etanol derivado da cana-de-açúcar é um produto com enorme potencial de uso no controle do efeito estufa e aquecimento do planeta, e pode prestar um grande auxílio ao atendimento das exigências do Protocolo de Kyoto, que muitos países terão que cumprir.