O setor que atualmente chamamos de “sucroenergético”, em suma, trata-se de um conjunto relativamente ampliado de atividades econômicas derivadas do plantio da cana-de-açúcar. Se, no século XVI, a produção canavieira no Brasil surgiu como resposta à demanda por um ingrediente ainda muito caro e pouco utilizado (o açúcar), no século XX, veio, também, a produzir a matéria-prima para a produção de etanol, passando de “açucareiro” para “sucroalcooleiro”.
Isso foi particularmente evidente com o Proálcool quando, preocupado com a dependência do petróleo estrangeiro, o governo brasileiro disponibilizou fartos recursos para o investimento em produção do combustível alternativo à gasolina. Evidentemente, tal operação só logrou sucesso pela rápida adoção do recém-criado carro a álcool comercial, durante a década de 1980, em virtude do menor custo por quilômetro rodado para os brasileiros.
A nomenclatura, porém, perdeu parte do seu sentido ainda na década de 1990 com a derrocada do carro a álcool, revertendo boa parte do destaque dado ao biocombustível a partir do Proálcool. Nos anos 2000, o advento e o sucesso dos carros flex-fuel (capazes de rodar utilizando o agora renomeado etanol e/ou gasolina) teriam justificado a manutenção da denominação sucroalcooleiro, não fosse uma mudança importante ocorrida no funcionamento das usinas: a ampla adoção de sistemas de cogeração, visando ao atendimento das demandas internas de energia (inclusive com a eletrificação dos processos) e a comercialização de excedente.
A ampliação do número de unidades capazes de produzir e comercializar energia levou à progressiva adoção do ora comum “sucroenergético”. A despeito das dificuldades infligidas pela má política econômica no início da década de 2010, o setor resguardou a característica multiproduto, nomeadamente, açúcar, etanol e energia elétrica.
Verdade seja dita, embora, nos anos 2000, o setor e o governo encorajassem o reconhecimento do etanol como alternativa ambientalmente correta à gasolina, o efeito desses esforços foi limitado, sendo o crescimento da participação do biocombustível decorrente de sua atratividade na bomba, assim como havia acontecido na década de 1980.
Em meados da década de 2010, quando as preocupações com o aquecimento global tomaram novas proporções, o setor, de repente, se viu em ótimas condições frente à mudança de humor mundial. Progressivamente, os aspectos ambientais e de economia circular passaram a ser um componente importante da estratégia do, já renomeado, setor sucroenergético, inclusive do ponto de vista financeiro.
Olhando para o mundo, o Acordo de Paris, assinado em 2016, acelerou o processo de descarbonização das economias, abrindo espaço para mercados de carbono, mandatos de mistura de combustíveis, aperto nos limites de emissões veiculares, entre outros. No Brasil, o RenovaBio e os requisitos mais restritivos do Proconve refletem essa nova realidade global.
A oportunidade que se apresenta ao setor sucroenergético é imensa quanto a seu papel como fornecedor de energia limpa, não apenas pelos consolidados etanol e eletricidade. Além de seu uso direto (puro ou adicionado à gasolina), o etanol pode ser a matéria-prima para a produção de novos combustíveis “verdes”, cuja demanda deve se elevar em todo o planeta em função de legislações que se avolumam.
A confirmação, contudo, de rotas economicamente viáveis para esses novos combustíveis a partir do etanol pode levar o setor a ter uma capacidade de influência na vida econômica, que não se vê desde quando se chamava apenas “açucareiro”.
A adoção do conceito de biorrefinaria – em contraposição à “usina sucroenergética” – tornaria, ainda mais claro, o abandono do apego do setor a produtos específicos. Nesse sentido, uma usina poderia – ela mesma ou por meio de parceiros próximos – produzir diversos itens de maneira análoga ao que ocorre em uma clássica refinaria de petróleo, incluindo etanol E1G e E2G, biometano, SAF, biobunker, hidrogênio verde, bioplásticos, etc.
Particularmente, no caso dos produtos energéticos, a cadeia da cana-de-açúcar pode ser fundamental para sua oferta global. Para atender a essa potencial demanda, porém, haverá necessidade de recursos financeiros, de capacidade de gestão e de governança que, hoje, não se vê em todos os grupos econômicos.
Os players que, nos últimos anos, combinaram os bons preços de comercialização com a racionalização da operação, e a maximização do uso da capacidade instalada – e, portanto, com redução de custos – ao menos no quesito financeiro, já saem com melhores condições de realizar os investimentos necessários para a conversão de usinas em biorrefinarias. Além disso, tais grupos já sinalizam melhores práticas de gestão e que, no futuro, se tornarão ainda mais críticas.
Se o cenário se confirmar, as novas biorrefinarias podem se tornar extremamente competitivas a montante, podendo pressionar os preços locais da matéria-prima e do mercado de terras. Isso pode deixar unidades agroindustriais defasadas tecnologicamente e/ou com problemas financeiros e com dificuldades de se manter na atividade. Tal situação pode favorecer um novo processo de consolidação do setor.
Ademais, os novos combustíveis não entrarão no mercado sem pesada regulamentação, não apenas por órgãos nacionais como a ANP, mas, também, por entidades no exterior que imporão elevados padrões de qualidade e rigoroso controle de todas as etapas de produção (inclusive a agrícola) no que tange a aspectos ambientais e sociais da produção.
Os benefícios que, hoje, existem pela boa governança da cadeia de produção, em nada se comparam aos que irão surgir caso se materialize o cenário de múltiplos derivados de etanol – cujo maior mercado será estrangeiro e em países desenvolvidos.
O futuro do mercado de etanol no Brasil é uma paisagem complexa, marcada por desafios e oportunidades. A ascensão do etanol como uma alternativa mais sustentável aos combustíveis fósseis é inegável, dada a crescente preocupação com as mudanças climáticas. No entanto, a governança das usinas de cana-de-açúcar no Brasil desempenha um papel crucial no delineamento desse futuro.
Novamente, o nível de gestão e de governança necessário para aproveitar essas oportunidades não se encontra totalmente disseminado pelo setor. Assim, os grupos que desejarem aproveitar, desde o início, a janela de oportunidade que se espera abrir deverão redesenhar suas estruturas gerenciais e de governança para serem capazes de atender os requisitos, não apenas técnicos, mas, também, ambientais e sociais, os quais serão impostos pelos compradores desses novos produtos.
A transição para uma matriz energética mais sustentável exige, não apenas avanços tecnológicos, mas, também um compromisso inequívoco com práticas éticas e responsáveis, em especial, ante os quesitos de governança. Reconhecendo os desafios que se apresentam, o setor pode olhar com otimismo para as oportunidades que surgem.