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Jaime Finguerut

Assessor de Tecnologia do CTC e Membro da ABBI - Associação Bras de Biotecnologia Industrial

Op-AA-49

Toda a energia da cana
A cana-de-açúcar, como toda planta, funciona com um “transdutor” de energia solar, ou seja, ela é uma forma de utilizar uma fonte abundante de energia, a solar. Todas as outras energias renováveis, como a fotovoltaica, a eólica e mesmo a hidroelétrica, dependem dessa fonte de energia, porém a cana, como todas as fontes de energia da biomassa, tem uma grande vantagem, a de que ela se autoconstrói e mantém ativamente os ciclos vitais do planeta, especialmente os ciclos do carbono e da água.

As outras energias renováveis exigem a intervenção direta de alguém que as construa, ou seja, fabrique e mantenha funcionando as placas à base de silício, as baterias à base de lítio, os sistemas de posicionamento e conexão, no caso da energia eólica, que construa e mantenha os aerogeradores e, obviamente, no caso da hidroelétrica, que construa e mantenha as represas, dirija e controle o fluxo da água, construa e mantenha as turbinas e a conexão às redes de distribuição. 
A cana-de-açúcar faz quase tudo isso sozinha...

Além disso, a cana é uma das plantas mais eficientes na transdução da energia solar, em vista da sua grande capacidade de fotossíntese e da sua enorme capacidade de adaptação aos diferentes ambientes, tendo em vista a sua complexidade genética. É uma planta perene, com alta produção de biomassa por hectare de terra utilizada, causando um mínimo impacto ambiental, em comparação com outras culturas agrícolas.

O potencial produtivo real da cana é muito maior do que as pouco mais de 80 toneladas por hectare que temos obtido nos últimos 20 anos, e as novas ferramentas da biotecnologia e do processamento 
massivo de dados irão liberar economicamente esse potencial, tornando a cana a principal solução brasileira e mundial para os desafios globais de produção sustentável. 
 
Do ponto de vista da utilização da biomassa da cana, essa planta também é muito vantajosa em relação a outras culturas. Isso se deve a um fato quase único de que uma parte substancial da fotossíntese realizada é armazenada no caule como açúcar solúvel, facilmente metabolizável, tanto pela cana como pelos seus utilizadores (nós). 
 
Outras plantas armazenam açúcar na semente, na forma de amido, com vista à reprodução. A cana se reproduz vegetativamente e, com isso, pode usar toda a energia da fotossíntese para crescer e fazer mais açúcar. O fato de o açúcar estar numa forma utilizável faz com que possamos economizar energia na sua utilização, aumentando a eficiência energética. Considerando os níveis atuais de produção de açúcar, etanol e bioeletricidade, conseguimos utilizar economicamente cerca de 1% da energia solar incidente na região produtora de cana.
 
Parece pouco comparada com a captura de cerca de 10% da energia solar incidente nas placas fotovoltaicas, mas o que ela faz é açúcar e fibra, que podem ser transformados em tudo o que é possível fazer na bioeconomia (alimentos, energia, saúde, transporte, bem-estar, empregos) enquanto nós é que temos de fabricar as placas e fazê-las funcionar para fazer apenas eletricidade...
 
Temos ainda de considerar que as fontes fósseis de energia (carvão, petróleo, gás), que, embora tenham permitido um aumento enorme na população global e na sua qualidade de vida, são finitas e seu uso tem um enorme impacto ambiental, o que agora reconhecemos, talvez não sejam suportáveis pela humanidade. Até muito recentemente, vivíamos do que produzíamos da terra e, com certeza, se houver um futuro para nós, vamos voltar a viver da terra, porém com um conforto muito maior para a maioria do que tínhamos 150-200 anos atrás, quando começamos a usar os fósseis do planeta.
 
A biomassa é, basicamente, formada de carbono, hidrogênio e oxigênio, numa fórmula aproximada de CH2O0,5, portanto muito próxima da composição dos carboidratos (CH2O, carbono e água). O petróleo e a maioria dos seus derivados que utilizamos para queimar ou converter em materiais são hidrocarbonetos, formados de carbono e hidrogênio. Vejam, portanto, que a maioria dos plásticos que usamos hoje são materiais altamente combustíveis sem necessidade, pois poderíamos produzir materiais plásticos contendo oxigênio numa composição mais próxima daquela da biomassa, como os poliésteres, que podem ter qualquer tipo de aplicação, com maior rendimento, maior facilidade de reúso e usando menos energia para serem produzidos a partir da biomassa.

Para viabilizar essa nova bioeconomia, é necessário não somente reconhecer o impacto negativo do uso dos fósseis, mesmo que atualmente estejam baratos, como também fazer grandes esforços de reduzir o custo da geração e do uso de biomassa, estando a cana-de-açúcar brasileira muito na frente na viabilização da bioeconomia.

 
A valorização da cana passa tanto pelo aumento significativo da sua produtividade com o desenvolvimento de melhores variedades de cana e com o plantio correto da variedade correta no local certo, mas também, e principalmente, pela valorização econômica de todas as suas frações. 

Sabemos, hoje, usar muito bem a fração solúvel da fotossíntese da cana (um terço do total): a sacarose. Com a produção de açúcar e etanol, geramos, aproximadamente, 2% do PIB, com mais de 800.000 empregos no interior do País. Com o outro terço da fotossíntese, o bagaço, permitimos que a produção de açúcar e álcool seja a mais sustentável do mundo e ainda geramos bioeletricidade, adicionando valor à cana e substituindo outras fontes de eletricidade. 
 
A cogeração de eletricidade nas usinas, porém, ainda é pouco eficiente, tendo em vista a dificuldade de realizar investimentos significativos nessa área, em vista da imprevisibilidade dos preços da bioeletricidade, o que significa que grandes avanços ocorrerão nessa área. 
 
O outro terço da fotossíntese, as folhas, as pontas da cana e a palha, é ainda menos utilizado; boa parte desse material é soprado de volta para o solo durante a colheita, e nem todos os solos e nem todas as condições climáticas precisam da proteção e dos nutrientes de toda a palha.
 
Estudos do CTC e de outros pesquisadores já mostraram que, em média, mais da metade da palha poderia ser, economicamente, retirada e utilizada. A palha pode substituir parte do bagaço na queima nas caldeiras, e o bagaço liberado pode ser usado para outros usos, como para fabricar o etanol de segunda geração. Esse etanol é fabricado na própria usina atual, usando os açúcares que estão na fibra de cana.

Como citamos acima, a composição média da biomassa é muito próxima da dos açúcares; de fato, o bagaço ou a palha de cana contêm mais de 65% de açúcares, cerca de 40% de celulose feita integralmente de glicose (açúcar com seis átomos de carbono ou C6) 
e 25% de hemicelulose, também feita de açúcares, principalmente a xilose (açúcar da madeira, com cinco átomos de carbono ou C5). O restante é, principalmente, a lignina, um composto que contém pouco oxigênio e, portanto, tem um alto poder calorífico, porém há também minerais e outros compostos.
 
Para fabricar o etanol de segunda geração, é preciso primeiro “amolecer” a estrutura da biomassa, separar os três componentes, de forma a permitir a separação dos açúcares monoméricos dos polissacarídeos correspondentes. Esse amolecimento, em geral, se consegue com calor e água, ou seja, um cozimento rápido (minutos) a altas temperaturas, em pressões relativamente elevadas. Essa fase do processamento se chama pré-tratamento, e o que ocorre é uma pré-hidrólise do material, com a quebra e a solubilização de parte da hemicelulose, bem como uma modificação na estrutura da lignina.

Após o pré-tratamento, pode-se separar o líquido rico em C5 e mandar os sólidos para a fase seguinte. Depois do pré-tratamento, vem a fase da produção dos açúcares, ou seja, a hidrólise (quebra pela água) dos polissacarídeos. Na maioria dos processos atuais, se usa a hidrólise catalisada por enzimas. Essas enzimas fazem uma espécie de digestão da fibra, solubilizando a grande maioria dos açúcares, e, após esse processo, feito em tanques agitados com a temperatura controlada, resulta um líquido rico em açúcares e um sólido rico em lignina.

 
Novamente, separam-se os sólidos, e o líquido é enviado para a fermentação, que pode ser a fermentação atual, caso tenhamos a separação anterior do C5. Caso o C5 não tenha sido separado, enviam-se todos os açúcares para uma nova fermentação, com leveduras especiais, engenheiradas para poder fermentar com eficiência todos os açúcares disponíveis. Após a fermentação, temos os processos convencionais de separação, concentração e purificação do etanol produzido, que tem exatamente a mesma composição do etanol atual chamado de primeira geração.
 
Estima-se que, com a separação da parte de palha em excesso e com o uso dos recursos e instalações da usina atual, pode-se aumentar a produção de etanol com a mesma área plantada de cana em 50%. O grande desafio é tanto encontrar soluções de engenharia robustas para processar milhões de toneladas de fibra por ano, da mesma forma que processamos os açúcares solúveis hoje, e ainda produzir os açúcares mais baratos que os da cana.
 
O Brasil é pioneiro nesse desenvolvimento, pois já fizemos pelo menos três instalações de produção, duas de tamanho comercial e uma de escala experimental. Todas essas plantas estão desenvolvendo, aceleradamente, a tecnologia da forma mais eficiente, que é aprender fazendo. O etanol de segunda geração ainda é, hoje, um pouco mais caro do que o de primeira geração, mas temos de lembrar que, no etanol de primeira geração, o Brasil reduziu o custo de produção em três vezes, desde o Proálcool.

Nosso desafio de redução de custo é muito menor agora, mas se trata de uma tecnologia totalmente nova, com muito pouca gente que conhece efetivamente essa nova área. No entanto 
temos a nosso favor, como já citadas, as novas ferramentas poderosas da biotecnologia e do processamento de dados, e, se houver a real percepção de que temos de continuar crescendo e melhorando a nossa vida e que o etanol de cana é a melhor opção de substituição da gasolina, rapidamente implantaremos essa tecnologia na maioria das usinas.
 
Com o aumento da produtividade e a redução do custo de produção da cana e o seu processamento integral, com a valorização dos produtos da biomassa, seja o seu uso energético ou como matéria-prima para fabricação de produtos de maior valor, o futuro da biomassa da cana é brilhante. No futuro, a partir da biomassa integral da cana, iremos fazer muito mais bioeletricidade e novos combustíveis, materiais e produtos de alto valor. Temos a necessidade e a oportunidade de aproveitar toda a energia da cana para um futuro sustentável e confortável.