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Marcos Fava Neves

Professor Titular da FEA/USP-RP e da Purdue University, EUA

Op-AA-64

Dez anos de transformações em dois meses
Começamos 2020 pensando que seria um dos melhores anos para a economia e os negócios no Brasil, com o alinhamento de fatores incomuns em nosso País: taxa de juros baixa, inflação controlada, câmbio favorável e confiança crescente. Dois eventos macroambientais, portanto incontroláveis, surgiram e mudaram radicalmente o cenário imaginado.

Uma guerra de preços no petróleo e a pandemia do coronavírus (Covid-19), sendo este de impactos diversos, muitos zeros maior que o primeiro. Passamos por uma situação surreal, vista apenas em filmes, de uma proposta de isolamento que vem afetando muito nossas vidas nas questões de saúde, econômicas, políticas e comportamentais.

Neste texto, abordo mudanças comportamentais com significativos impactos no futuro. Faço escolhendo e analisando um conjunto de 10 palavras, para facilitar tanto a leitura como propiciar o entendimento de como cada uma pode afetar, no futuro, o ambiente dos negócios. Ressalto que é incrível este momento, apoiado em pelo menos cinco dos preceitos que iluminaram o Arcadismo, movimento literário do século XVIII.
 
1. Digital:  Empresas e pessoas entraram no mundo digital de forma irreversível, e esta será, cada vez mais, a plataforma de vendas, de relacionamentos, de avaliação e de construção de valor. Obtiveram-se metas de cinco anos atingidas em 20 dias. O on-line na aquisição de serviços, conteúdos e outros passará a ser o preponderante, e os espaços físicos terão que se adaptar a isso, pois se vivenciará uma redução na velocidade de crescimento de centros de compras e outras formas. O digital também afeta fortemente a área de educação, que precisará rever o que é presencial e o que é digital, e todo esse conteúdo gratuito servirá a populações mais carentes, oferecendo acesso domiciliar. Se conciliarmos os jovens que tudo dominam do digital com os idosos que quase tudo dominam de conceitos e sabedoria, teremos materiais sensacionais desse esforço em “dobradinha”. Atendimentos digitais também vieram para ficar, como nas áreas médicas e de saúde em geral, e as pessoas aprenderão a se acostumar com menos qualidade para poderem ver o que querem, principalmente nos grandes meios de comunicação, com as entradas diretas de entrevistados a partir de suas casas, aliás, que gostoso “entrar dentro das casas das pessoas”. Afetou também, de forma definitiva, a cultura e a entrega de entretenimento, e as lives, que atraíram milhões em todos os sentidos (de engajamento, de público, de doações, de patrocínios) e que foram impulsionadas pelos cantores sertanejos no Brasil representando um fenômeno na história da difusão da arte. 

2. Casa: ficou evidente com o trabalho em casa que, nas posições administrativas, o que antes se julgava que não vingaria, funcionou e ainda com grande eficiência. Será visto que aquele grande volume de voos, de viagens de carros para reuniões e outros, se reduzirão, pois todos se acostumaram às reuniões via plataformas de conexão, que funcionaram incrivelmente bem. Empresas também perceberão que não precisam de tantas pessoas nas atividades administrativas, comerciais e de vendas, portanto acredito num downsizing. Redução da demanda por imóveis comerciais, downsizing de escritórios e de pessoas (overheads) e redução de necessidades de transporte. E poderá voltar a crescer o segmento de turismo, pois, agora que se está permanecendo mais tempo em casa, não viajando, a vontade de viajar com a família, e não de ficar em casa no final de semana, pode voltar. Esse fato pode valorizar o morar mais no campo, nos arredores, nos menores centros e menos nos grandes centros. O viver em casa, ao lado da família, dos filhos, ressaltou nas pessoas um dos principais e mais conhecidos preceitos do Arcadismo, o carpe diem, aproveitar o dia, o presente, a realidade do momento. Contemplar, ou uma palavra que, em espanhol, se usa muito: desfrutar. 

3. Simplicidade: neste período em isolamento, boa parte das pessoas vem aproveitando do tempo domiciliar para reorganizar armários, estantes e outros compartimentos caseiros; materiais estão sendo doados, pois se percebeu não serem necessários. Creio que uma vida de mais simplicidade se aproximou, com o questionamento “será que preciso disso?” sendo mais realizado daqui por diante. Isso traz impactos no consumo de muitos produtos. Daremos mais valor aos detalhes, às pequenas coisas, ao local, ao feito na minha região, ao meu bairro, à sabedoria vinda da simplicidade. Na linha da simplificação, muitos aplicativos foram criados e permitirão grandes ganhos nos negócios, conectando ofertantes e demandantes, de maneira simples e fácil; além disso, com simplicidade, aderimos aos modelos de entregas (delivery), que explodiram neste período e, pelo jeito, vieram para ficar. Os árcades usavam o conceito da aurea mediocritas, dizendo que, para se atingir a felicidade, não seria necessária riquezas e posses. Há o lado perverso desse comportamento, de um menor consumismo, pois ele é destruidor de postos de trabalho e contribuirá para aumentar o desemprego no mundo, e aqui teremos que ser criativos para pensar em formas de trabalho e de renda mínima, formas de inclusão sustentável de pessoas.    
 
4. Engajamento: esse período de reflexão fez as pessoas aumentarem suas ações sociais, sua vontade de se engajar em causas, conectadas pelas mais diversas formas, e creio que esse movimento se estabelecerá. Causas, principalmente sociais, terão mais adeptos, e uma vontade de trabalhar com o desafio comum aumentará muito. Aumentarão a solidariedade, a doação para avaliações on-line, orientações e recomendações gratuitas a outras pessoas, participação em “clubes” e outras formas de engajamento. Nesse cenário, surgirá um protagonismo social muito maior das empresas e das pessoas, pensando nos menos favorecidos. 

5. Neocoletivismo: na linha do engajamento citado, creio que um novo comportamento pró-coletivo deverá ganhar força, e, com isso, os modelos cooperativistas e associativistas encontrarão significativo espaço e, ainda, se beneficiarão da possibilidade de comunicação digital com suas bases de associados. Mecanismos de crowdfunding, criação das comunidades e outras formas de fazer os pequenos se tornarem grandes. Menos “eu” e mais “nós”, mais o “ser” e menos o “ter”. 
 
6. Neonacionalismo: uma volta da valorização, por consumidores, daquilo que é produzido no País e governos tentarão ver que insumos fundamentais poderão ser elaborados internamente, visando à redução da dependência internacional. Haverá uma priorização da pesquisa, desenvolvimento e inovação visando à fabricação local. Valorização do made in Brazil, do turismo no País e outros. Nasce uma nova percepção de soberania no mundo, e o Brasil tem como ser protagonista no fornecimento seguro e ambientalmente limpo de alimentos ao planeta.

7. Infotoxicação: neste período de isolamento, as pessoas estão submetidas a um volume brutal de informações, com redes de mídias e TV 24 horas dedicadas ao mesmo assunto; as tradicionais matérias negativas se sobrepondo, em muito, às positivas, grupos enlouquecidos de Whats App e outras formas que provocaram o pânico -- o que está exigindo, em muitos casos, tratamento psicológico; por sua vez, isso também trouxe, para parte da população, o "aprendizado do filtro".  Às suas maneiras, pessoas ficaram mais treinadas para selecionar o que é relevante, verificar as fontes e ajustar o volume de informações à sua capacidade de tolerância. Alguns precisarão de ajuda, e profissões, como a psicologia, ganharão espaço. Os árcades se inspiravam no conceito de inutilia truncat, ou seja, excluir o inútil. 

8. Monitoramento: os sistemas digitais aliados às necessidades de saúde farão com que as pessoas tolerem o monitoramento de comportamentos, deslocamentos e outros. Creio também que isso trará um enorme impacto nas questões de segurança pública, devendo reduzir propensão ao crime e outras atividades, pois os rastros estarão evidentes e à disposição das autoridades. Uma nova fase de transparência se aproxima, em que a sociedade civil poderá, digitalmente, acompanhar todos os processos que envolvem o Estado e suas compras, fazer comparações, avaliações e outros. 
 
9. Sanidade: em meu julgamento, essa será outra mudança comportamental. Muito conhecimento, entre outros, sobre saúde, higiene, limpeza, contaminações tem sido compartilhado, e parte dele ficará com a população após a crise. Trará também muitos impactos. Haverá uma valorização da pesquisa na área da infraestrutura e do acesso das pessoas à saúde e aos seus procedimentos, e o Estado terá papel fundamental nessa área para investir e garantir saúde a todos. 
 
10. Natureza:  neste momento, a natureza e o meio ambiente vêm ganhando maior espaço. A valorização dos seus detalhes, de suas espécies, de nascer e do pôr do sol, sua preservação, da noção do quão poluidor é o ser humano urbano e seu modo anterior de vida trazem à lembrança, segundo árcades, dois preceitos: o fugere urbem e o locus amoenus, que pregavam a vida mais afeita ao campo, ao bucólico, à natureza. A natureza ganhará com o tempo que sobrará, para maior contemplação e valorização de sua existência. 
 
Essas são as 10 palavras selecionadas para tentar traduzir mudanças comportamentais advindas deste período de isolamento, quarentena e reflexões pessoais. Esta reflexão pessoal, com certeza, não será unânime, alimentará controvérsias e contestações, porém é um exercício sobre o que pode ser um futuro próximo, não para toda a população, mas para parte dela, e também não sei por quanto tempo, sendo meu modo de sentir e projetar o advento de um novo tempo.

O interessante, agora, é um exercício em cada uma delas para entender como essas mudanças afetarão os negócios, trazendo uma nova configuração. Em tempos de reinvenção, fica minha contribuição para as ações e para as melhorias esperadas.