Professor do Dpto. de Administração da FEA/USP e Coordenador de Agronegócios do (PENSA) da FIA Business School da FGV/EESP
A imensa maioria dos cerca de 5 milhões de propriedades rurais no Brasil é controlada por famílias empresárias, desde pequenos negócios até empreendimentos que possuem dezenas ou até centenas de milhares de hectares, com produção em larga escala e elevado grau tecnológico.
Seja qual for a dimensão do negócio e complexidade da família empresária, um grande desafio é o equacionamento do processo sucessório, na medida em que as novas gerações se preparam (ou não) para assumir o controle das atividades produtivas. Por isso, a adoção de boas práticas de governança nas propriedades rurais é base fundamental para o equacionamento de um processo sucessório exitoso.
De geração em geração: O envolvimento de uma família empresária com a atividade rural é lastreado em relações de confiança, integração de esforços, visão de longo prazo e agilidade no processo decisório. As relações inter e intrageracionais são a chave para a longevidade nas organizações familiares. Mas a relação entre sucessores e sucedidos muitas vezes apresenta armadilhas que devem ser evitadas.
Por um lado, é natural que o patriarca ou matriarca de uma família empresária tenha a expectativa de que seus herdeiros possam se qualificar para atuar no negócio da família.
E, quando existem herdeiros motivados, o resultado pode ser magnífico. Mas, por outro lado, tal expectativa não deve se tornar uma pressão ou obsessão por parte dos pais a ponto de limitar as decisões de vida e carreira das novas gerações. É preciso ter o cuidado para não restringir as escolhas profissionais dos jovens, que, muitas vezes, são induzidos a atuar no negócio da família para satisfazer os desejos dos pais. Isso pode resultar em frustrações pessoais e impactos negativos para o próprio negócio. É importante, sim, preparar herdeiros para serem potenciais “sócios” com clareza de seus deveres e direitos para com a sociedade familiar. Mas não significa necessariamente que herdeiros deverão ser os “gestores do negócio da família”.
Nessa mesma linha, nas relações intrageracionais, em uma sociedade de irmãos ou consórcio de primos, há que se fazer a distinção entre a sucessão do patrimônio (participação societária e direito a dividendos) e a sucessão na gestão do negócio. Membros familiares que atuam na gestão devem ser remunerados como “gestores” (salário ou pró-labore e, eventualmente, incentivos variáveis) além da remuneração como “sócios”. Mas devem prestar contas de seus atos de forma transparente e compartilhar o processo decisório estratégico com seus “sócios não gestores”. Vale aqui a máxima de que quem tem sócio tem patrão.
O gerenciamento dos conflitos: Os conflitos podem ocorrer nas dimensões intra ou intergeracionais, em qualquer sociedade empresarial. Mas na sociedade empresarial “familiar”, por norma, ocorrem com maior intensidade, em função da carga de emoção envolvida, especialmente, no ambiente do agro, em que se misturam a atividade produtiva com o estilo de vida do campo.
Muitas vezes, “conflitos cognitivos” evoluem para “conflitos afetivos” entre membros familiares, o que pode ser altamente corrosivo, tanto para o negócio quanto para a família empresária. Isso se dá, muitas vezes, por diferenças absolutamente naturais, afinal, os herdeiros de uma família empresária não “se escolheram” como sócios. Divergências de opiniões sobre como investir ou aumentar retiradas, alavancar, diversificar ou não o negócio, podem gerar divergências e marcas profundas nos relacionamentos. Frequentemente, essas disputas são de difícil solução, pois a saída de sócios descontentes pode ser infactível, dado que grande parte do patrimônio da família está no próprio ativo imobiliário (terra).
Os ingredientes para um bom processo sucessório: Alguns “combinados” podem ser elencados para a evolução de um processo sucessório efetivo, que leve em conta o alinhamento de interesses da família empresária e da empresa familiar:
a. A busca do equilíbrio entre razão e emoção, empatia e o desenvolvimento das chamadas soft skills são importantes para manter a harmonia das relações familiares. Mas, igualmente importante, é a formalização de acordos de sócios e protocolos de família, além de um bom planejamento da sucessão patrimonial. Vale aqui a máxima de que o combinado não é caro.
b. A profissionalização das propriedades rurais não deve se dar necessariamente com membros da família nem com a contratação de profissionais externos. O importante da profissionalização é tratar gestores, familiares ou não, como profissionais com direitos e deveres claramente estabelecidos, a partir de uma cultura meritocrática, baseada nas competências para liderança, que requer habilidades técnicas e soft skills.
c. A confusão entre família e negócio deve ser evitada. As regras devem ser claras acerca da participação de membros familiares na gestão do negócio, sem nepotismo. A separação da remuneração do trabalho (pró-labore) e do capital (distribuição de resultados) deve ser transparente.
d. A visão e estratégias do negócio devem ser compartilhadas inter e intragerações. É importante ser fomentado um ambiente de diálogo, equidade e respeito pelos interesses individuais, mas sem se sobrepor à sociedade empresarial. O plano de sucessão do patrimônio e gestão deve ser estruturado por meio do consenso.
e. Efetivamente, é importante educar os herdeiros para o papel de sócios, não “necessariamente” gestores. Trilhas de aprendizagem distintas devem ser implementadas para o exercício do papel de sócios e o papel de gestores.
f. O “legado da família” deve ser cultivado. E vai muito além da transferência de patrimônio e gestão das operações do negócio. Ele envolve a cultura, valores e princípios transmitidos ao longo das gerações. É o amálgama que une as gerações e transmite sinais ao mercado, funcionários, clientes, credores, parceiros comerciais e demais stakeholders. Ao longo das gerações, o legado que CRIA valor é aquele que se aperfeiçoa, preserva valores positivos e mitiga erros e falhas humanas.
g. O aperfeiçoamento do sistema de governança implica estruturar as instâncias decisórias do ecossistema família-empresa, separar os papéis de gestores e conselhos administrativos (formais ou consultivos) e estruturar o conselho de família para tratar de assuntos da família empresária. Além disso, é necessária uma estruturação jurídica que permita o melhor equacionamento tributário associado à redução de riscos societários. Tal sistema de governança deve estar alicerçado nos princípios da transparência, equidade e responsabilidade.
Em síntese, a busca da longevidade de um negócio familiar requer uma estrutura de governança efetiva, adequada ao ciclo de evolução e maturidade da família empresária e do negócio familiar. Cada caso é um caso, literalmente, pois os negócios e as famílias são únicos. Mas existem ferramentas e processos do ponto de vista jurídico, administrativo e comportamental que podem ajudar as famílias empresárias do agro na busca da longevidade do negócio e das boas relações familiares.